tese sobre João de Deus - Engenharia Civil (2024)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM

CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

RICARDO DELGADO DE CARVALHO

ESPIRITUALIDADE, SOFRIMENTO E TRANSFORMAÇÃO: SENTIDOS E

SIGNIFICADOS DAS INTERVENÇÕES ESPIRITUAIS POR

JOÃO DE DEUS, NA PERCEPÇÃO DOS

FILHOS DA CASA DE DOM INÁCIO

EM ABADIÂNIA, GOIÁS

GOIÂNIA

2019

RICARDO DELGADO DE CARVALHO

ESPIRITUALIDADE, SOFRIMENTO E TRANSFORMAÇÃO: SENTIDOS E

SIGNIFICADOS DAS INTERVENÇÕES ESPIRITUAIS POR

JOÃO DE DEUS, NA PERCEPÇÃO DOS

FILHOS DA CASA DE DOM INÁCIO

EM ABADIÂNIA, GOIÁS

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Ciências da

Religião da Pontifícia Universidade Católica de

Goiás como requisito parcial para a obtenção do

título de Doutor. Linha de Pesquisa: Cultura e

Sistemas simbólicos

Orientador: Dr. Luiz Antonio Signates Freitas

GOIÂNIA

2019

C331e Carvalho, Ricardo Delgado de

Espiritualidade, sofrimento e transformação : sentidos

e significados das intervenções espirituais por João

de Deus, na percepção dos filhos da Casa de Dom Inácio

em Abadiânia, Goiás / Ricardo Delgado de Carvalho.--

2019.

356 f.: il.

Texto em português, com resumo em inglês

Tese (doutorado) -- Pontifícia Universidade Católica

de Goiás, Escola de Formação de Professores e Humanidades,

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da

Religião - Goiânia, 2019

Inclui referências: f. 328-348

1. João - de Deus, 1942-. 2. Casa de Dom Inácio. 3.

Espiritismo. 4. Abadiânia (GO). 5. Cura pela fé.

I.Freitas, Luiz Antonio Signates. II.Pontifícia

Universidade Católica de Goiás. III. Título.

CDU: Ed. 2007 -- 133.9(043)

DEDICATÓRIA

Não é preciso entrar para a história para fazer um mundo melhor.

Mahatma Gandhi

Dedico esta tese àqueles que buscam e fazem

deste mundo um lugar melhor para todos.

https://www.pensador.com/autor/mahatma_gandhi/

AGRADECIMENTO

Dizem que a melhor forma de expressar a gratidão às pessoas é viver os seus

ensinamentos; não somente os agradáveis, mas também os contundentes que nos

levaram a ser quem somos ou a chegar onde estamos. É evidente que todos essas

instruções contemplam a ética universal. Assim, agradeço a todos e a tudo o que me

aconteceu na preparação para este momento.

Gratidão especial aos meus familiares: meus pais, Jorge (in memorian) e Ivone, meus

irmãos, André (in memorian), César e Fábio, ao meu filho amado Glauco, a minha

amada esposa Carla, aos meus antepassados, em especial a minha avó Olga e aos

meus parentes. Agradeço ao amor universal: vocês em minha vida.

Gratidão eterna aos mais que amigos Maria de Lourdes Pontes Caetano e Eduardo

Alves dos Santos (in memorian). Todo carinho a vocês por me ‗adotarem‘ como filho

espiritual e me ensinarem a pensar melhor para viver melhor.

Ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu Ciências da Religião que me acolheu

com respeito e prestatividade. Aos professores do programa, em especial à Profa. Dra.

Irene e aos Profs. Dr. Clóvis, Dr. Alberto e Dr. Paulo. Um agradecimento especial ao

meu orientador Prof. Dr. Luiz Antonio Signates Freitas que prontamente se dispôs na

labuta do tema, fornecendo amizade e companheirismo. Meus mais sinceros votos de

gratidão, Prof. Signates. MUITO OBRIGADO!!!

À Banca de qualificação da tese, Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira e ao Prof. Dr.

Ademar Arthur Chioro dos Reis; obrigado pelas ricas contribuições. À banca de

defesa: Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira, Prof. Dr. Ademar Arthur Chioro dos Reis,

Prof. Dr. Alberto da Silva Moreira, Profa Dra. Ângela Teixeira de Moraes, Prof. Dr.

Clóvis Ecco e à profa. Dra. (ao prof. Dr) suplente, minha gratidão.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela

concessão da bolsa de estudos do doutorado.

Agradecimento especial ao médium João de Deus, à Casa de Dom Inácio de Loyola

e aos[às] Filhos[as] da Casa. Notável reconhecimento aos[às] Filhos[as] da Casa,

sujeitos da pesquisa de campo, vocês são exemplos de amor e gratidão, espalhando

sem*ntes que o mundo tanto necessita; MUITO OBRIGADO!!!

À Universidade Federal do Goiás, aos colegas professores[as] de vários cursos da

Regional Goiás, em especial aos professores[as] do curso de Filosofia e técnicos

administrativos; um reconhecimento singular ao amigo Prof. Dr. José Jivaldo Lima

(Filosofia) e ao Prof. Carlos Alberto Xavier do Nascimento (Administração).

Aos amigos[as] que direta ou indiretamente contribuíram na caminhada e desejaram

meu aperfeiçoamento, em especial à Débora Gomides, Régis Flor, Claudete Ribeiro

de Araújo, Marisa Braga, Gerson Marietto, Ângela Maria das Graças dos Santos

Homercher. Enfim, agradeço a todas as almas e espíritos, especialmente Luís e

Alfredo, que contribuíram sobremaneira para esta tese. Meus mais sinceros

agradecimentos!!!

EPÍGRAFE

(...) Percebi rapidamente que práticas de cura alternativas continuam sendo um mistério (e

portanto, controversas) para a maioria das pessoas que pensam de modo convencional,

porque os seus proponentes padecem de cinco defeitos filosóficos:

1. Eles não fazem distinção entre mente e consciência. Há muito tempo, Descartes reuniu

os dois conceitos, mente e consciência, no mesmo conceito de mente, e esse erro continua

assombrando a medicina.

2. A função causal da consciência como origem da causação descendente inexiste ou está

envolta em ambiguidades. Por alguma razão, as lições da física quântica não penetram a

armadura da física clássica nem mesmo dos praticantes da medicina alternativa.

3. O papel característico da mente em contraposição ao cérebro não foi elucidado. O

avanço científico neste campo, que já vem ocorrendo há uma década, não é levado em

conta.

4. O papel distintivo do corpo vital em comparação com o corpo físico também é

negligenciado. Este é outro ponto em que os avanços científicos recentes não são

considerados.

5. Nenhum deles – consciência, a mente e o corpo vital – é reconhecido como não-

físico. Precisamos resolver o problema do dualismo, mas quem diz que não há maneira de

contornar o dualismo, que ele é um problema intransponível?

Dr. Amit Goswami

RESUMO

CARVALHO, Ricardo Delgado de. Espiritualidade, sofrimento e transformação:

sentidos e significados das intervenções espirituais por João de Deus, na

percepção dos Filhos da Casa de Dom Inácio em Abadiânia, Goiás. 2019. f. 356.

Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás

– PUC-GOIÁS – Goiânia-GO, 2019.

A presente tese tem como objeto as intervenções espirituais efetuadas por João de

Deus e como objetivo geral entender e analisar os sentidos e significados dos[as]

Filhos[as] da Casa advindos das intervenções espirituais realizadas por João de Deus

em Abadiânia/GO. Esse objetivo geral foi suscitado a partir da questão-problema a

ser utilizada como fio condutor no desenvolvimento do trabalho. Estudos feitos

mostram que o médium João de Deus atendeu cerca de 11 milhões de pessoas em

busca de cura para suas doenças e ou alívio para suas mentes. Os conceitos

adotados como referencial teórico são: Intervenções Espirituais, Sentidos e

Significados e Espiritismo, fundamentados nas áreas das Ciências da Religião,

mormente na antropologia e sociologia. Como marco teórico empregou-se conceitos

fundamentais de Peter Berger e Thomas Luckmann na construção social da realidade,

associados à teoria

,

um FC fez a oração de

Cáritas – uma famosa oração espírita. Solicitou-se amor a todos, agradecimento ao

médium João, às Entidades e a Deus. Não demorou para que aquela emoção

agradável cedesse lugar ao observador distante. Manter os olhos fechados durante

cinco horas não foi tarefa fácil [das 7h às 12h], não só pelo barulho das pessoas que

adentravam ao local, mas porque havia certo impulso em querer observar o que a

Entidade fazia ‗lá na frente‘; existiam certos aspectos para serem observados e

curiosidades a serem sanadas [quadros, objetos, pessoas, procedimentos dos FC que

organizavam essa sala], pensamentos vulgares permeavam nossa mente

[pensamentos de afazeres cotidianos] e outros. Outro fator desconfortante foi ficarmos

sentados em um assento pouco almofadado; as nádegas ficaram doridas, forçando

várias mudanças do corpo, acompanhadas por melindres de não encostar no vizinho

e poder atrapalhá-lo. Quando olhamos disfarçadamente o relógio, havia se passado

uma hora e meia, como se fossem incômodas duas e meia, e depois, tal qual ‗ligar um

interruptor imagético‘, as três horas e meia restantes se passaram como se fossem

meia hora. Desta forma, ao nos atentar, as cinco horas findaram. No desfecho, outro

FC finalizou com preces de agradecimento a Deus, às Entidades e ao médium João;

recebemos um copinho com água fluidificada e saímos (DIÁRIO DE CAMPO,

08.02.2018)

É importante destacar que a energia da corrente é uma espécie de usina de

força da Casa (GARCIA, 2013). Segundo os FC, a distração dos presentes pode

dificultar o trabalho da Entidade. Logo, pede-se constantemente: ―intenção e

concentração. Mantenha os olhos fechados‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.02.2018). Certa

vez, a Entidade saiu de onde estava e foi sentar-se em uma sala próxima. Lá ela

alegou: ―ninguém está concentrado naquela outra sala. Os olhos estão abertos e

ninguém mantém o foco, por isso vou trabalhar aqui. A energia é mais forte‖ (apud

CUMMING e LEFFLER, 2008, p.102).

Conforme Garcia (2009), grande parte das pessoas da corrente são médiuns,

mas há pessoas que buscam curas – elas ‗simplesmente participam‘; algumas viajam

36

centenas ou milhares de quilômetros para isso. Como poderá ser observado

posteriormente, a cura que Gerson Marietto e Melinda Holland receberam – preferiram

a publicização de seus nomes – foi através da corrente. Para Cumming e Leffler

(2008), a cura não acontece apenas quando a Entidade está diante da pessoa, mas

também quando esta se encontra na corrente, com os participantes de olhos

fechados, em sintonia com a fonte divina. Desta maneira, o processo de cura pode

surgir de inúmeros modos: uma visão em forma de clarividência, sons

[clariaudiências], lembranças, imagens simbólicas, fragrâncias, emoções e outros.

Foi participando da corrente que o FC7 sentiu não um som, nem a

clarividência, mas uma espécie de corrente elétrica:

O Dr. Augusto foi fazer cirurgia no palco. A gente estava de olhos

fechados – mas ficou ouvindo né? Eu não sabia que era o Dr. Augusto

naquele momento. Aí quando ele desceu do palco, ele passou – eu

tava na primeira sala [Sala dos Médiuns] – ele passou naquela sala, e

eu de olho fechado. Não sabia, ele passou e quando ele passou, eu

senti a energia aqui no cocoruto. Sabe, se encosta um fio elétrico faz

‗purururu‘... que o pessoal sente também. Eu senti aquele impacto de

um choque. Não fez barulho, mas fez ‗purururu‘ e aí o que que

aconteceu? Eu desfaleci no colo da minha esposa. Do lado tinha uma

pessoa na corrente e minha esposa. Ela abriu os olhos né, na primeira

sala, abriu os olhos e o que que aconteceu? Pediu ajuda pra esse aí,

que é um senhor barbudo, o estrangeiro. Eu lembro desse detalhe

porque ele me carregou na enfermaria. Eu tava semi-inconsciente e

aquela barba encostando em mim [risos]. Chegando na enfermaria,

me deitou na cama, aquela coisa toda. E a minha esposa foi falar com

o Dr. Augusto. Ele se identificou, riu e falou: ‗filha, o seu marido foi

operado, eu operei o seu marido tá?! Leva ele pra casa e volta na

semana que vem‘ (FC7).

Ao direcionar a devida importância às orientações dos guias da corrente, cria-

se certo equilíbrio interno e mantém-se contato com a própria parte divina (CUMMING

e LEFFLER, 2008). Possivelmente, eis aí o retrato da consciência expandida e a base

da cura, como se observa em algumas literaturas (XAVIER, 2017; MACHADO, 2016;

CUMMING e LEFFLER, 2008). Após sair do momento da corrente, muitos relatam

sensações de paz, alegria e bem-estar indescritíveis. Quiçá, sejam justamente essas

emoções que levem numerosas pessoas a permanecerem na Casa, juntamente com

a de gratidão. Por meio desta experiência direta, muitas descobrem maneiras de lidar

com suas próprias neuroses e problemas, amenizando dores e sofrimentos, tornando-

se pessoas melhores e servindo de exemplo para outros. Felipe Klein, advogado e

participante da corrente há treze anos, conta que chegou à Casa por curiosidade dos

37

pais, que eram químicos e interessavam-se por metafísica. Para ele, o mais penoso é

a mudança íntima: ―o trabalho mais lento que se pode enfrentar é o da mudança de

padrões mentais e emocionais‖ (apud MACHADO, 2016, p.43). Foi justamente essa

transformação intrínseca que a Entidade sugeriu ao FC3, quase cego. Ela solicitou-

lhe que ele permanecesse na corrente por sete anos. Nas próprias palavras do FC3:

―a Entidade disse que eu ainda não estava pronto, que precisava haver uma

transformação pessoal‖ (FC3).

A respeito dessa forma de resolução de problemas, Machado (2016) narra a

história de Leonor Vervloet Feu Rosa [sic], uma FC ativa e comedida que, em 1990,

com 22 anos, chegou ali com forte doença degenerativa. O médium, sem explicar

nada, mandou-a para a corrente. Ali viveu vigorosas emoções:

Ao descrever a experiência, Leonor rememora ter entrado em um

‗descortinar de vivências‘, no qual antigas emoções, medo e

sentimentos vieram à tona com grande violência. Nos meses iniciais,

tudo o que podia fazer no decorrer da sessão era colocar a cabeça

baixa quase entre as pernas e chorar sem parar. Esse processo, em

suas palavras, permitiu que ela se reencontrasse com coisas que,

aparentemente, nem sabia que existiam em seu interior e das quais

ela sentia falta. Aos poucos, seus pensamentos e emoções foram se

acalmando, a mente clareada por novas experiências começou a

serenar e a doença foi superada, levando-a a resolver que valia a pena

dedicar a vida aos trabalhos da Casa de Dom Inácio. Segundo ela, a

corrente serve para que cada um encontre formas de vencer a doença,

transformando sua disposição interior e superando a vitimização que

normalmente a acompanha. Quando esse processo ocorre de maneira

completa, afirma Leonor, não é necessário se consultar com o médium

ou esperar dele qualquer intervenção – pois o trabalho essencial de

cura energética se dá nas salas internas da casa (MACHADO, 2016,

p.60, grifo da autora).

Machado (2016) conclui que, de acordo com a filosofia da Casa de Dom Inácio

e com interpretações dos que frequentam a corrente, este é um lugar para desenvolver

a tolerância, mesmo cada um sendo destinado às suas próprias missões. O próprio

João de Deus, em palestra, asseverou: ―o que cura é Deus e a paciência de todos‖

(DEPOIMENTO, 2017, s/p). Sejam os visitantes de primeira vez, os participantes da

corrente, os[as] Filhos[as] da Casa, os voluntários, os médiuns responsáveis por

organizar trabalhos e, mesmo João Teixeira de Faria – nome real do médium João de

Deus –, ―todos estão em busca de superação de seus carmas e da cura física, mental

e espiritual‖ (MACHADO, 2016, p.61). Nesse sentido, ressalta-se que a FC1 foi

―disciplinada e educada pelo trabalho na corrente da Casa e pela oração‖. Se a

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tolerância é uma espécie de disciplina intelectual [‗deve-se fazer isso‘] ou moral [‗o

que se fizer deve ser para o bem‘] essa FC se sentiu modificada

,

e reorientada para

um caminho diverso do qual vivia, como se verificará adiante.

Como cada pessoa busca progresso na realização de seu próprio trabalho, a

corrente parece ser um lugar ideal para descobrir disposições, potencialidades e

faculdades na trilha da autodescoberta e da autocura. Aparentemente, há ganho de

novas energias, ânimos são despertados para enfrentar problemas, novas

construções são erguidas por onde passou um ―tsunami emocional‖; tristezas são

substituídas por alegrias, lembranças dolorosas tornam-se apenas lembranças,

monstros transformam-se em hamsters e individualidades quebradas são

reconstruídas. Cabe ressaltar que mesmo alguém encontrando uma pessoa famosa,

do mundo da TV ou da política na corrente, ninguém pode dizer em que posição ela

está. Afinal, parece que todos estão em processo de cura, melhora e de descoberta.

Sobre sensações incontroláveis na corrente, o senhor Ethienne Dias Afonso

comunica que, viciado em cocaína, crack e outras drogas, não enxergava mais

esperança para seu caso [desempregado, afastado dos filhos, havia tentado suicídio

algumas vezes], mas diante da insistência de sua mãe, em 2011 viajou para a Casa

de Dom Inácio. ―Eu fui usando crack de Brasília a Abadiânia e com minha mãe dentro

do carro, minha mãe e meu padrasto‖. Quando passou pela Entidade, esta pediu para

que ele sentasse na corrente: ―naquele momento, pra mim começou meu tratamento

com dependência química‖.

Eu sentei na corrente naquele dia e me lembro que simplesmente

apaguei, não fiquei três minutos acordado e apaguei, desmaiei,

dormi... sentado no banco da corrente eu dormi. Não sei por quanto

tempo, só sei que quando eu acordei eu estava mais calmo, mais

tranquilo, muito cansado, muito cansado. Então saí, entrei no carro e

voltei dormindo até Brasília, cheguei na casa da minha mãe, deitei e

dormi. Dormi até o outro dia, assim, pra mais de meio dia, fui acordar

quase de tarde. Sendo que eu tenho ainda, principalmente naquela

época, eu tinha uma dificuldade de dormir muito grande por causa das

disfunções do uso do crack. Eu não dormia praticamente, as vezes eu

passava três, quatro, cinco dias sem dormir, sem conseguir fechar o

olho, usando droga (apud DIÁRIO DE CAMPO, 28.06.2018, grifo de

ênfase).

O senhor Ethienne considera que seu sono foi obra das Entidades: ―hoje

percebo que aquele sono já era uma forma de tratamento das Entidades em mim‖.

Atesta que frequentou a Casa de Dom Inácio por alguns anos e foi abandonando o

39

vício aos poucos, mas encara a si mesmo como um doente em tratamento da adicção

das drogas. Tem apreço pela Entidade por ter-lhe dito: ―Não abandone seu tratamento

aqui na terra; seu tratamento da terra vai ser paralelo ao tratamento espiritual que

você está fazendo‖. Atualmente exerce a função de conselheiro terapêutico em

dependência química em Vitória, ES, e, quando pode, viaja para a Casa, com o intuito

de participar da corrente ou dar seu depoimento.

Assim, qualquer ser humano é um mundo à parte; no entanto, todos vivem no

mesmo universo e parece que a corrente emerge como um lugar de processos

sofríveis e de aprendizado, desconstruções profundas e remédios amargos, mas

também [ou, por isso] um lugar de amor; um espaço para fortalecer capacidades

morais, recriar imagens de esperança. Foi justamente essa imagem de amor que a

FC8 apresenta:

Um dia lembro que assim, todos os anos a gente faz, desde muitos

anos a gente faz, começou com um tapetinho assim de pétalas de

rosa, no dia do Dom Inácio [no mês de agosto], hoje a gente faz toda

uma festa muito linda. A gente enfeita com flores, fica muito bonito. E

uma vez eu vi na corrente assim, vi aquele monte de bandeiras de

países, estava concentrada, aquele monte de bandeiras, eu falei: ‗que

estranho‘, aí eu fechei os olhos e abri os olhos e fechei de novo, aí

veio aquela coisa, ‗lembra filha que todos os meus filhos e filhas do

mundo um dia chegarão aqui? ‘ Aí eu lembrei o que Dom Inácio falou:

‗um dia todos os meus filhos e filhas aqui chegarão, de todas as partes

do mundo‘. Agora eles dizem cristão. Eu passei e-mail para tudo

quanto é lugar. Na primeira vez deu setenta e sete bandeiras e agora

a gente já tem oitenta e poucos países que vêm aqui e aí a gente está

colando as bandeiras todas. Então assim, a gente coloca a frase ‗Que

sejam bem-vindos todos os meus filhos e filhas de todos os lugares‘.

Então assim, esse lugar aqui é um lugar que não existe. Eu acho que

no mundo não existe lugar igual como aqui. Para mim isso aqui é um

microcosmos do macrocosmo... [emoção e voz embargada]. É onde

todas as raças, todas as religiões e todos os tipos de pessoas se

encontram. Então é isso, Abadiânia para mim é uma coisa mágica

(FC8).

No fundo da Sala da Entidade encontra-se a cadeira do médium João,

rodeada por flores, duas estátuas grandes de santas, um grande triângulo pendurado

na parede; atrás da cadeira, há um quadro com a pintura de Dom Inácio, e ao lado

desta, uma Bíblia aberta e um cesto no chão. Nesse cesto a Entidade deposita fotos,

pedidos e papéis deixados pelos andantes. Em entrevista, o médium João diz que

acorda de madrugada para ‗entregar‘ esses pedidos a Deus:

40

Eu vejo essas energias às 2, 3 horas da manhã; que eu faço a

concentração de agradecimento desses pedidos que as pessoa faz

[sic], desses papéis, pedidos, 2 horas da manhã eu faço entrega

desses pedido [sic] para o ser maior. De vez em quando eu vejo né,

eu tô vendo [...] mas acredito em Deus (JOÃO, 2016, s/p, grifo de

ênfase).

Próximo à cadeira do médium, ficam cadeiras destinadas a convidados

especiais do próprio João de Deus; normalmente são artistas, políticos e autoridades

famosas ou não. Todas as filas entram na sala da Entidade e passam pelo médium

incorporado. De modo geral, quando a pessoa está próxima, João em Entidade

entrega-lhe um papel rabiscado, comumente chamado ‗receita‘, indicando passiflora.

Poucos colocam a mão na mão do médium João e dirigem-lhe a palavra, uma

pergunta talvez. ―Nesse momento, se você não entender a resposta não tenha

vergonha de perguntar novamente, pois se ficar sem entender, pode ser tarde‖

(DIÁRIO DE CAMPO, 04.10.2017), anunciou uma palestrante. É diante dessa cadeira

que, quando necessário, ocorrem operações físicas, muletas são jogadas ao chão,

broncas por irresponsabilidade, solicitação do médium que deseja ver a pessoa no dia

seguinte ou à tarde, doação de livro e ou DVD pelo médium ao visitante – somente a

Entidade sabe o motivo do ‗presente‘ – e ministração de água fluidificada.

No dia em que participamos da corrente, observamos uma pessoa que se

ajoelhou diante da cadeira vazia do médium – os trabalhos ainda não haviam

começados –, ela pôs as mãos no assento e fez uma oração. Um senhor que estava

sentado ao nosso lado disse que desde 2016 essa prática era proibida, pois o médium

não mais a permitia. Entendemos que se o médium desaprova devoção a ele, nada

impede que se crie em seu entorno veneração, não só por sua pessoa, mas por

objetos que o circundam. Em outro momento, um FC nos mostrou uma foto noturna

da Casa, com um poderoso facho de luz bem ao centro, ―justamente no lugar da

cadeira‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 17.09.2015), complementou o FC.

Sala de passes e intervenções espirituais

Contígua à Sala da Entidade, nesse ambiente há três macas para pessoas

com graves problemas de saúde. Elas podem permanecer deitadas por longos

períodos, dependendo o caso. Há também vários bancos, os quais acomodam até

sessenta pessoas sentadas. ―É comum os FC pedirem que a pessoa ‗sente mais para

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lá‘, deixando mais espaço, para caber mais pessoas‖ (DIÁRIO DE CAMPO,

08.11.2017).

Quando acomodadas, algumas pessoas podem simplesmente dormir, sendo

necessário acordá-la para sair da sala. ―Todas as pessoas cirurgiadas espiritualmente,

bem como as atendidas pela Entidade, nas diferentes filas formadas,

,

passam pela

sala de passes8, onde médiuns auxiliares aplicam passes9 coletivos‖ (GARCIA, 2013,

p.110).

Dependendo da fila que a Sala de passes recebe, esse espaço também se

torna Sala de intervenções espirituais, onde as pessoas, que aceitam receber até nove

intervenções, sentam e concentram-se. No entanto, conforme cada caso, como dito

nas palestras dos FC, as Entidades realizam as intervenções em qualquer lugar da

Casa. Quanto ao limite do número de intervenções – ‗até nove‘ – ―as Entidades

disseram que esta é a medida final, não se sabe o porquê até esse número‖ (DIÁRIO

DE CAMPO, 08.06.2018). Quando a pessoa senta na cadeira, se tiver apenas uma

intervenção pretendida, recomenda-se colocar uma mão no coração e a outra na

região necessitada; se forem mais locais, uma mão no coração e a outra no local que

achar mais importante. Decorrido em torno de quinze minutos, aparece o médium

João e assevera: ―em nome de Deus, os filhos estão operados‖ (JOÃO, 2018, s/p).

É possível um indivíduo receber cura de uma doença a qual ele não sabia que

tinha? Segundo Garcia (2013) sim, muitas pessoas estão doentes sem saberem.

―Pode ser que alguém tenha algum problema de saúde e seja cirurgiada mesmo sem

ter conhecimento‖ (GARCIA, 2013, p.120). Provavelmente o foi caso que aconteceu

com uma pesquisadora, Monalisa Dibo, na época, doutoranda da PUC-SP. Passando

pela Entidade, esta lhe disse para voltar à tarde para uma intervenção. Pensou no

porquê. ―Por que uma cirurgia se a proposta era de conhecê-lo? Não tenho nenhuma

doença grave como aquelas pessoas que esperavam uma oportunidade de cirurgia

para sua cura‖ (DIBO, 2013, p.77). Quando voltou à tarde e sentou na sala de

intervenções: ―A sensação era inexplicável, mas foi possível perceber uma energia

8 Passe – ―ato de passar as mãos repetidas vezes por diante ou por cima de pessoa que se pretende

magnetizar ou curar pela força mediúnica‖ (HOUAISS, 2001). Também conhecido como imposição de

mãos.

9 Para maiores informações sobre a imposição de mãos, recomenda-se uma pesquisa na área da

medicina, onde a autora realizou experimento dos efeitos da imposição de mãos em camundongos,

que não acreditam em energia, nem sofrem de efeito placebo. Cf. FERREIRA, Antonia Maura Alves.

Avaliação molecular de um modelo experimental de terapia complementar. Dissertação de

mestrado em Medicina. Coimbra, PT: Universidade de Coimbra, 2014.

42

muito forte neste momento. Nada me vinha a mente: só pensei em Deus e senti uma

pontada em meu seio direito e uma pressão muito grande em minha nuca‖ (DIBO,

2013, p.78).

Mas nem sempre a intervenção espiritual é feita nessa sala. O FC7 relata um

caso presenciado por ele, em que sua esposa, também FC, trabalha atualmente na

sala de passes. A Entidade fez um corte no pé desta FC e mandou-a trabalhar na

corrente:

[...] a minha esposa recebeu muitas cirurgias ao vivo. Uma vez ela

recebeu cirurgia em pé. Ele [João em Entidade] cortou o lado do pé

dela ali sentadinho, ele sentado ali e ela foi reclamar que o pé tava

inchado, barriga do pé assim. Aí ele falou: ‗deixa eu ver... Não. Vamos

resolver isso já‘. [Na época] ela trabalhava na enfermaria. A minha

esposa é médium né? Aí, olhou o pé dela, tal, ela tava de sandália, ele

cortou ali... fez um enfaixamentozinho ali, acho que era pouca coisa...

e não saiu sangue, passou. Eu acompanhei de perto. Aí terminou e

falou: ‗pronto filha, vai trabalhar‘, mandou ela ir pra corrente, na sala

do passe. A minha mulher trabalha agora, nos últimos anos, na sala

do passe (FC7).

Filhos[as] da Casa

Apesar de João de Deus ter iniciado sozinho o trabalho mediúnico, aos 16

anos de idade, a Casa de Dom Inácio hoje não funcionaria a contento sem os[as]

Filhos[as] da Casa e os funcionários. Estes últimos – mais de trinta – são devidamente

registrados em carteira. Sobre os médiuns da corrente, muitos são considerados[as]

Filhos[as] da Casa [FC]. Porém, engana-se ao pensar que somente há Filhos[as] da

Casa na Casa, ou seja, contabiliza-se em todo os lugares que o médium atendeu, seja

em países ou em cidades, mais de 2 mil FC (GARCIA, 2013). Como somente a

Entidade pode dizer quem é ou não FC, cabe a ela apontar ‗o(a) escolhido(a)‘.

Quando se está na Casa, a Entidade afirma que a pessoa é FC e deve sentar

na corrente (MACHADO, 2016). Isto resulta em mais responsabilidade. O critério

utilizado parece ser a afinidade ou potencialidade de se dedicar ao próximo, de amá-

lo. ―A pessoa deixa de ser apenas frequentadora para auxiliar nos trabalhos

desenvolvidos. Como voluntários, comparecem espontaneamente,

independentemente da religião de cada um‖ (GARCIA, 2013, p.111). Não há

predeterminação do dia para comparecerem, ficando à escolha se participarão ou não,

por isso alguns frequentam esporadicamente, outros, estão cotidianamente no recinto.

Foi com estes últimos que a pesquisa da presente tese se deu.

43

Muitos FC já estiveram doentes – em alguns casos em estados terminais – e

foram curados pela Entidade. ―Em agradecimento por essa segunda oportunidade de

viver, eles dedicam todo o tempo do qual podem dispor ao bom funcionamento da

Casa, na qualidade de médiuns fornecedores de ‗corrente‘, na administração ou como

assistentes‖ (PELLEGRINO-ESTRICH, s/d, p.68, grifo do autor). Quando o médium

João atendia em outra cidade, muitas coisas eram deslocadas junto dele: bagagem,

farmacopeia e outros. Esse serviço logístico era realizado voluntariamente pelos FC.

Para o autor Pellegrino-Estrich (s/d), os FC são autênticos anjos ao se dedicarem de

corpo e alma com atenção e carinho aos doentes, pois foi assim que foram tratados

quando estavam fragilizados e chegaram à Casa. Percebe-se que forte vínculo se

forma ao tratar bem a pessoa doente e, maior ainda, ao curá-la.

As histórias desses FC são distintas. Se não são para os ouvintes ou leitores,

são bastante significativas para a própria pessoa. A narrativa que motivou a investigar

os FC foi a que segue. Uma palestrante da Casa chamou uma mulher para dar seu

relato. Essa FC, aparentando ter 30 anos, contou que quando jovem engravidou. O

pai a expulsou de casa e ela, vagando sem rumo certo, com o filho já nascido, portador

de uma deficiência no olho, teve como destino a Casa de Dom Inácio. Cansada e com

fome, só pensava em comer algo, curar o filho e arranjar um emprego para se

sustentarem. Envergonhada e receosa em entrar na fila, encostou-se numa coluna

sem saber ao certo o que fazer. De repente, ouviu um nome igual ao seu sendo

chamado. De imediato achou que era outra pessoa, mas como ninguém apareceu, e

devido a insistência, ela saiu de trás da coluna, levantou o braço de modo inseguro e

foi encaminhada à Entidade. Surpresa por não ter dito seu nome a ninguém, João de

Deus afirmou que curaria seu filho e ela emocionada disse que não tinha como pagar

porque estava inativa no mercado... [choro... contenção]. O médium afirmou que não

cobrava nada de ninguém e caso ela quisesse, ele poderia ajudá-la com um emprego.

Emocionada, finalizou com voz embargada que isto tinha acontecido há mais de oito

anos e desde então ela se encontrava lá (DIÁRIO DE CAMPO, 17.09.2015).

O relato dessa jovem impressionou, assim como muitos frequentadores que

choravam: desprezada pela família, desempregada, perambulando à esmo, com o

filho com problemas visuais, e hoje, mãe e filho curados, pois João de Deus a

favoreceu com emprego [...]. Logo, diante do exposto, é notório que os FC merecem

e necessitam de uma pesquisa mais detalhada. Assim, eis o intento

socioantropológico neste trabalho: entender e analisar os sentidos e significados dos

44

FC advindos das intervenções espirituais realizadas por João de Deus em

Abadiânia/GO. Desta forma, seguem os fatos narrados dos FC que a Entidade

auxiliou. Os oito FC entrevistados responderam a esta pergunta: ‗como você

conheceu a Casa de Dom Inácio?‘

,

FC1 - Segue de forma completa todo o relato desta FC não só porque ela se

recusava em simplesmente conhecer a Casa, mas em buscar a cura, revelando seu

forte desejo por outro tipo de vida.

Meu sogro era militar em Santa Maria, Rio Grande do Sul, e tinha visto

um vídeo com as operações de João de Deus. Me trouxeram e fiz a

cirurgia. Antes da cirurgia [espiritual] eu era uma mulher de 22 anos,

casada, com dois filhos pequenos, que interrompera os estudos aos

16 anos para casar porque seria mãe. Com marido militar, limitava-me

a cuidar dos filhos, do marido e do lar. Católica praticante, acreditava

que Deus tinha um plano para cada um de nós. Então vieram as

enxaquecas e na sequência muito rápido, a doença [tumor na região

da pineal] e a cegueira. Quase não ouvia mais. Depois da cirurgia

espiritual [com João de Deus], sem dores, minha vida ficou diferente,

tudo parecia novo para mim. A Entidade me orientou a estudar a

doutrina espírita. Fui disciplinada e educada pelo trabalho na corrente

da Casa [de Dom Inácio] e pela oração. Por muitos anos orientada

pelo médium João e as Entidades. Fui observada por meu

neurologista em consultas e exames regulares por seis anos e ele

nunca mais encontrou nada em minha cabeça. Tive a oportunidade de

ser mãe mais três vezes e também adotamos mais uma criança.

Realizei muitos trabalhos voluntários levando conforto aos doentes na

forma de passe energético e a palavra de Deus. Fiz faculdade de

pedagogia em licenciatura plena na UNIFRA - Universidade

Franciscana, em Santa Maria, RS. Estudei, trabalhei e vivi

intensamente (FC1).

FC2 – Este FC nasceu no Peru, mas na época em que conheceu João de

Deus, ele morava, trabalhava e participava de um grupo de pessoas interessadas na

temática espiritual nos Estados Unidos da América [EUA]. Houve um momento do

grupo se afastar dos assuntos dogmáticos. Assim, os participantes resolveram

explorar outros tópicos e verem mensalmente um vídeo sobre espiritualismo. Quando

o tema foi ‗vida após a morte‘, pegaram um material sobre João de Deus. Como esse

FC viajava, na época, para o Brasil várias vezes por ano, sugeriram que ele visitasse

Abadiânia. Quando veio ao Brasil, perguntou sobre João de Deus aos colegas da

empresa e muitos estranharam e perguntaram: ―você é espirita?‖ Ele respondeu: ―não

sei o que é isso, eu não sei, eu sou espiritual, mas espírita não sei o que é‖. Ninguém

sabia algo sobre a Casa. Ele procurou e achou um livro sobre a Casa e foi para

Abadiânia conhecer. Segundo o FC2, ―dentro dos nossos estudos, eu sabia que

45

intuitivamente a espiritualidade tinha comando do nível físico, tanto material como na

nossa saúde, mas nunca tinha visto uma demonstração disso. Então foi interesse pra

mim‖. Assim, observa-se que faltava uma experiência prática em sua vida. A partir daí

a existência desse FC começou a mudar ‗ligeiramente‘. ―Então comecei a ver... e

tenho visto que é muito mais complicado do que pensava; não é uma coisa que você

estuda, aprende e entende‖ (FC2, grifo de ênfase). Leva tempo. Dentro de um ano a

empresa em que esse FC trabalhava se instalou no Brasil e, de repente, fechou as

portas.

Quando a empresa desandou, no dia seguinte eu já tinha meu novo

negócio. Pergunto pra mim: ‗como você fez isso?‘. Só Deus, porque

eu não fiz nada. Literalmente todo o grupo da América Latina foi

demitido no dia 2 de janeiro e no dia 3 eu já tinha meu novo negócio

(FC2).

Assim, com novo emprego, ele começou também a ser guia na Casa, trazendo

grupos estrangeiros. Sobre as experiências vividas na Casa, esse FC relata: ―Lembro

de uma menina sueca, alta, linda que veio aqui; ela estava apaixonada por um homem

e queria se casar com ele, ter filhos com ele, mas ele estava casando com outra

mulher e ela resolveu vir na Casa. [...]‖. Ela fez uma intervenção física e quando soube

que eram 40 dias de abstinência sexual, ficou surpresa:

‗Como vou fazer abstinência sexual, por 40 dias?‘ [risos] Falei: ‗confia,

confia nas regras, confia nas regras‘. Ela voltou para Miami, onde

morava. 40 dias, no 41 toca o telefone, era o cara, falou: ‗oh tô aqui na

Florida, resolvi não casar e já que tô aqui queria ver se posso te

visitar?‘ Então eles casaram e tiveram filhos, foi assim um encontro

daqueles (FC2).

FC3 – Este FC chegou na Casa em fevereiro de 2004, trazendo nos braços

seu filho com paralisia cerebral. Emocionado, ele relata sobre o rebento:

―desenganado pelos médicos desde os 15 dias de nascido, [...] foi por causa do meu

filho, pra buscar um tratamento alternativo, uma vez que os médicos não tinham

solução para o caso dele‖ (FC3).

FC4 – O FC4 ficou sabendo de Abadiânia através de seu irmão. A esposa do

irmão, com câncer no peritônio, fazia tratamento a distância pela Casa. Ela fez uma

intervenção espiritual através de foto que sua filha levou na Casa. No entanto,

continuava internada no hospital Sírio Libanês em São Paulo. Um médico do hospital,

46

devido ao exame de radiografia, questionou: ―você operou?‖. Diante da resposta

negativa, ele perguntou novamente: ―não? Como você tá cheia de ponto na pleura?‖.

Os médicos estavam observando os pontos da intervenção espiritual. Nesse

momento, os esculápios estavam indecisos se operavam ou não a mulher devido ao

estágio avançado da doença. Mesmo não sendo operada por estes, dias depois ela

apresentou melhora e recebeu alta médica. Depois o irmão falou muito sobre João de

Deus, despertando curiosidade do FC4. Um dia, esse FC encontrou uma revista

falando da atriz hollywoodiana Shirley MacLaine, a qual foi curada de câncer do

estômago na Casa. Então ele falou: ―pô vem cá, mas será que é verdade esse negócio

aí?‖. Com as falas insistentes de sua sobrinha, resolveu conhecer a Casa. Ele ainda

insistia: ―Falei: não acredito nesse negócio né, até um dia que eu tava lá sentado no

auditório‖, assistindo uma intervenção física, bem perto da Entidade. ―Ah falei: agora

eu quero ver [risos] agora eu quero ver esse cara de verdade. É igual São Tomé,

quero ver se é verdade esse negócio aí‖. Na época, sendo católico: ―nunca entrei em

igreja diferente, porque naquela época os padres ensinavam que você não podia

entrar nas outras igrejas né? Ainda mais igreja com espírito...‖. Diante da operação

pela Entidade, a surpresa emocionada no relato: ―Aí falei: meu Deus do céu é verdade;

comecei a chorar e comecei a chorar né? E ele tava de costa operando, tava de

costa..., aí, de repente, ele virou e falou assim: você vai para minha corrente‖. Porém,

chorando de emoção diante da operação, não escutou. ―Aí depois ele continuou a

operação, virou, chamou a moça e falou assim: ‗leva ele para minha corrente‘. Aí falei

assim: ‗como é que ele sabe que eu tô chorando se não me viu caramba; aí eu

acreditei em mais ainda né [risos]‖. Desde esse momento ele não parou de visitar a

Casa, até que um dia: ―Eu tava com a minha esposa. Ela falou assim: vamos morar

aqui? Eu falei: vambora. Nem lá em São Paulo não fomos mais. Nem a nossa

mudança buscamos, ficou tudo lá, ficou tudo essas coisas lá‖. Arrumaram uma casa

simples, mas toda deteriorada e ―começamos a arrumar a casa, começamos a arrumar

a casa e ficamos aqui. Pegamos um amor no lugar‖ (FC4).

FC5 – Esta FC apresenta um relato extenso e profícuo, mas aqui se resumiu.

Além disso, segundo esta FC, mostra o trabalho das Entidades. Conforme afirma,

havia uma prevenção referente ao que ela passaria no porvir. Ademais, faz-se notar

que muitos FC passam por algo semelhante ao chegarem na Casa de Dom Inácio:

‗Cheguei em casa. Esta é minha casa‘; um lugar que buscavam há muito tempo.

47

Nasci, fui criada, vivi sempre em Porto Alegre. Eu fiquei sabendo da

Casa de Dom Inácio de Loyola... eu tinha um apartamento e a minha

prima morava nesse meu apartamento. E eu fui visitá-la, quando

encontrei uma amiga na portaria do prédio, ela disse: ‗T., o que

aconteceu contigo? Tu

,

emagreceu tanto!‘. Aí eu falei: ‗Não, eu estou

com meu pai hospitalizado e sei que vai desencarnar, agora é só o

tempo de Deus. Então essa vida corrida de hospital. E ele quer que eu

sempre o acompanhe e eu emagreci‘. Aí ela disse: ‗Bah, pô tu nunca

ouviu falar sobre a Casa de Dom Inácio de Loyola? João de Deus?‘,

eu digo: ‗Não, nunca ouvi falar!‘. ‗Qual é o problema do teu pai?‘, eu

digo: ‗Meu pai está com seis tumores na cabeça e os médicos

disseram que não tem mais condições, mas a única coisa que eu peço

a Deus – e que agora ele vai passar por uma cirurgia, para a retirada

de um tumor –, para que volte os movimentos normais, para que o

pouco que resta de vida dele seja digno, e não vá para uma cadeira

de rodas, que eu sei que se fosse comigo ele faria a mesma coisa‘. Aí

ela disse: ‗Bah, eu acompanhei um amigo meu lá pelo lado de Goiás,

Abadiânia‘, eu digo: ‗Que lugar é esse? Abadiânia?‘ – àquela época

não tinha nem mapa – eu digo: ‗Nunca ouvi falar‘. ‗Poderia tentar‘ e eu

digo: ‗Não, meu pai não tem mais condições, porque essa cirurgia de

um tumor, eles me deram meio por cento de chance e eu confiando

em Deus e entregando nas mãos dele, vai ser feito, que seja feito a

vontade dele. Mas quem sabe, me fala sobre essa casa para o F., o

F. sim, agora para meu pai eu sei que chegou à hora dele‘. Então ela

disse: ‗Pois é, tu me conhece, sabe que não acredito em nada e eu fui

com esse meu colega que tinha um tumor na cabeça e ficou curado.

Fez uma cirurgia espiritual‘ (FC5, grifo de ênfase).

Um tempo depois, esta FC foi conhecer a Casa de Dom Inácio. Quando

chegou: ―é como se eu conhecesse há muito tempo. Me senti em casa‖ (FC5, grifo

de ênfase).

FC6 – Este FC veio à Casa motivado pela curiosidade. Em suas próprias

palavras, ele diz: ―Eu vim aqui por uma casualidade e por um fato até diferente. Eu

não vim na época por causa de doença, mas vim movido por uma grande curiosidade

também, em função dos fatos que aqui acontecem e aconteciam‖. Depois de superar

a indecisão em vir à Casa, interessou-se pelo que viu:

Gostei e vim de ônibus a primeira vez; são trinta e duas horas de

viagem, foi muito difícil vir para cá, porque eu marcava e não tinha

tempo, marcava e não tinha tempo, marcava e não tinha tempo. Então

as coisas não coincidiram, até que um dia eu tomei a decisão, vim e

vi. Vim, vi, gostei e fiquei. Então isso eu fiz durante mais ou menos

treze anos, depois continuei vindo aqui até hoje [atualmente reside

próximo à Casa] (FC6).

FC7 – É comum palestrantes da Casa dizerem que muitas pessoas vão até lá

pelo martírio, ―95% vem pelo sofrimento; porém, outros FC dizem 99%‖ (DIÁRIO DE

48

CAMPO, 21.06.2018). Este foi o móbil deste FC. Mas, o sofrimento maior era de um

familiar, que estava sendo tratado por médico oncologista. ―Aí o doutor Augusto nos

recebeu – no dia eu não sabia quem era a Entidade... [emoção, silêncio contido] – e

disse que ia nos ajudar, e nós ficamos muito emocionados porque precisávamos de

ajuda‖. Uma prima de sua esposa estava tratando seu filho na Casa e, quando ficou

sabendo do problema, ela indicou João de Deus e lhe deu uma revista ‗Manchete‘

falando dele. ―Começamos a ver fotografias das curas, eu era bem mais novo, lógico,

vinte e dois anos atrás, e nós lembramos que no passado tinha o Arigó que fazia

cirurgia e uma das fotos era o seu João fazendo uma catarata‖ (FC7, grifo de ênfase).

O entusiasmo aumentou quando chegaram e foram passar com a Entidade: ―O Dr.

Augusto sorriu pra nós... [emoção, voz embargada] – eu tô me emocionando muito –

ele sorriu pra nós com um sorriso, digamos assim, irônico né, como a dizer: ‗esses

dois vão ficar aqui‘...‖. E a Entidade pronunciou: ―...‗eu vou ajudar vocês, vou abrir o

caminho‘ isso que ele fala tradicionalmente‖ (FC7). Um ano depois, ele e a esposa

chegam a uma conclusão: ―os filhos estão grandes, adultos, vamos comprar um lote

aqui?! Compramos um lote aqui e aí nós viemos se estabelecer aqui. Depois a minha

esposa veio trabalhar na enfermaria‖ e ele também foi trabalhar na Casa. Após isso,

vieram: ―a mãe, a minha cunhada, a filha, começou vir outras pessoas que eu vim

trazendo ao longo de 3 anos‖ (FC7), mas nenhum parente resolveu residir em

Abadiânia, somente eles.

FC8 – Esta FC declara que com 14 anos de idade moravam no sul do país, e

sua mãe a levou num centro kardecista, onde ambas começaram a trabalhar nele. ―Ali

foi minha escola e ali trabalhamos durante dezoito anos‖. Quando sua mãe teve artrite

reumatoide, os médiuns do local disseram que estavam ajudando-a a achar um local

para se tratar, ―mas que ela teria que então ir adiante. E que ela iria achar o local e aí

nós por um... plano espiritual – plano, eles traçam um para todo mundo –,

encontraríamos‖ (grifo de ênfase). Nesse momento, souberam que um médium

curador João de Deus viria do centro do Brasil. Uma colega disse que já havia levado

o filho em Goiás para tratar com o médium João Teixeira de Faria, que pensou ser

outra pessoa. Entraram em contato com uma guia, Dona Terezinha, que disse para

não irem para Abadiânia, mas para a cidade aonde iria o médium. ―Ela disse: não, eu

vou fazer a excursão, e vai ser daqui a dois finais de semana‘. [...] Enfim, nós pegamos

o ônibus‖ para Santo Ângelo; foram em média 8 horas de viagem. ―Foi uma viagem

49

bastante diferente assim..., porque as pessoas todas estavam em busca de uma cura,

todos com muitas dores, inclusive minha mãe. Enfim, nós chegamos ao lugar umas

6h da manhã‖ (grifo de ênfase). Surpresa com o local:

Eu tinha muita confiança que o mentor daquela casa era o doutor

Bezerra de Menezes... ‗que lugar é esse?‘ Porque no meio do... uma

terra vermelha, muito parecida com aqui [Abadiânia], uma terra

vermelha no meio do campo assim, no campo mesmo, e uma casinha,

uma microcasa lá e aí nós chegamos e a minha mãe estava com muita

dor e tal. E as pessoas todas assim, com muitas dores e nossa guia

não explicou nada, porque ela era uma senhorinha de uns setenta

anos. Não sabia muito, ela estava empolgada porque ela ia casar, e

ela falou muito pouco sobre... não explicou o que aconteceria, só disse

que a gente ia ver um homem e que esse homem curava. E isso me

deixou um pouco apreensiva porque eu pensei: ‗e se não for?‘. E essas

pessoas todas vieram e eu fiquei muito preocupada com isso. Enfim,

nós chegamos e quando a gente chegou eu vi que estava tocando

aquela música de São Francisco de Assis e o sol estava nascendo.

Foi uma coisa muito... lembro dessa cena assim e aquilo me acalmou

um pouco, pensei: ‗bom, o lugar é bonito, é calmo, mas é estranho‖.

Assim, eu senti uma coisa estranha e ela [D. Terezinha] tinha nos

pedido para levar cadeiras e a gente levou; tinha umas... naquele dia

ele ia atender mais de quatro mil pessoas. Tinha muita gente, muita

gente, muito ônibus, muita gente, muita gente já às 6h da manhã e as

pessoas estavam meio despertas, assim, estavam comendo e tal. E

ela disse para nós: ‗vamos?‘... Fomos direto até o local que ela nos

levou e tinha uma corda em volta daquele... uma corda assim e um

chão batido ali e ali tinha um círculo, uma corda. Fazia um círculo

assim, e ela disse: ‗coloca as cadeiras aqui em volta‘. E a gente

colocou e ficamos bem pertinho da corda. Ficamos sentadas, ela disse

para a gente não sair dali. E demorou, demorou, demorou e

finalmente, pelas 8h mais ou menos a gente escutou uma musiquinha

assim. Vimos um senhor meio estranho, com rabo de cavalo aqui,

descalço, puxando um senhor bem moreno. Ele levantou aquela

corda, botou a última cadeira no meio, uma cadeira de pau, pegou o

canivetinho... uma faquinha e puxou todo o globo ocular do cara e

começou a operar e eu estava bem do lado, e pensando: ‗meu Deus‘.

Porque é uma coisa muito, muito bruta. Eu disse: ‗meu Deus, mãe nem

olha, você não vai passar por isso não‘. Eu falei baixinho e ele pegou

e olhou para mim e disse: ‗você, vem aqui‘, apontou para mim,

,

e

levantou a corda e eu passei e eu estava com camiseta branca assim.

E ele pegou e começou mexendo aquele olho e botava todas as

gosmas na camiseta e aí eu fiquei mais assim, indignada: ‗quê que

isso?‟ [Risos] ‗que homem é esse? Que coisa é essa?‘. E aquilo me

deu assim uma... porque eu estava acostumada com outro tipo de

trabalho. E tudo muito assim, imagina? Kardecismo ninguém fala,

muito silencioso, e aí ele só fez aquele monte de coisa e começou a

me explicar o que estava acontecendo no olho do cara e ele disse:

‗você é da saúde?‘. Eu trabalhava como nutricionista no Hospital. E aí

eu vi aquilo e tal, fez aquele monte de coisa, daí ele disse assim: ‗tá‘,

levantou a corda e mandou ir de volta para o meu lugar e ele saiu, saiu

levando aquele senhor junto. E aí, a nossa guia lá falou assim: ‗tá,

agora todo mundo vem atrás de mim‘ e a gente foi, aquilo era um

50

campo, mas um campo enorme assim, uma grama que nem aqui,

sabe? Uma grama de campo mesmo, aí mandou a gente sentar e aí

começou já o sol. Não tinha sombra no campo, tudo aquele monte de

criança, sem maca, tinha muita gente, muito doente fisicamente, tinha

muita coisa assim... muita deformidade. Lembro que foi uma coisa

bastante chocante, porque era uma coisa muito diferente... Eu nunca

tinha visto tanta gente, com tanto sofrimento. Foi bem assim ... para

mim foi um choque, sabe? E aí nós sentamos por ali mesmo na grama

e tal, e a gente ficou aguardando, porque ela disse que a gente tinha

que aguardar a fila e a nossa fila era a fila de primeira vez, a gente

ficou horas ali. Só sei que de repente chegou um senhor do nada

assim, ele veio, chegou do meu lado e disse assim: ‗minha irmã venha

comigo‘, ‗minha irmãzinha‘ ele falou, eu olhei para ele que não o

conhecia, falei: ‗aonde?‘ Ele disse: ‗vamos lá na sua casinha‘, eu disse:

‗mas eu não conheço o senhor‘, ele disse: ‗mas vamos lá que eles

estão lhe chamando‘, aí eu disse para minha mãe: ‗que estranho‘, e

minha mãe disse: ‗não, vai, vai!‘. Minha mãe estava com tanta dor que

ela nem pensava, raciocinava, eu disse: ‗mas eu não sei‘, ele disse:

‗não, vem aqui‘. Super querido assim hoje, ele ainda vem na Casa, o

nome dele é da família dos R., pessoas maravilhosas, família toda –

ele acompanhava o senhor João nas viagens – e aí ele me levou em

um lugar assim, uma casinha pequenina, pequenina e ali os médiuns

eles tinham... como eu te falei eu estava acostumada com o

Kardecismo, ali era tudo sentado nos banquinhos baixinhos assim, e

as pessoas tinham uma mediunidade muito ostensiva. Tanto que

depois fiquei sabendo, ninguém tinha explicado que tinha a primeira

sala, mas era a primeira sala, a gente entrava e não tinha repartição

não. Uma casa pequena, então primeira sala, segunda sala, era tudo

junto era só separada por banquinhos assim, aí ele me levou no lugar

pouco afastado daquele pessoal onde tinha outras pessoas sentadas.

E tinha uma cadeira bem pertinho assim de mim, tinha uma cadeira no

canto, mas diferente a cadeira, ele disse: ‗senta aqui, fecha os olhos‘,

e aí eu falei para ele... porque eu estava acostumada trabalhar no

centro kardecista de olhos abertos que a gente trabalhava, dava

passes e tinha que deixar os olhos abertos, não podia abaixar os

olhos. Eu disse: ‗por quê? Não estou entendendo‘, e ele disse assim:

‗porque agora você vai trabalhar‘, mas eu disse: ‗de olhos fechados?‘

Ele disse: ‗aqui é assim‘. E eu não consegui fechar os olhos, eu estava

muito angustiada pensando, minha mãe não estava ali. E aí, eu fiquei

pensando na minha mãe e tal e aquele pessoal atrás de mim gritando,

gritando, chiando e eu: ‗o quê que eu estou fazendo aqui?‘. Me

sentindo muito mal. Daí chegou uma senhorinha, assim gordinha,

baixinha: „fecha os olhos‟, ela gritou, aí eu fiquei olhando para ela e

disse: ‗eu não posso‘ e ela: ‗fecha os olhos se não a Entidade não

pode vir‘, aí eu pensei: ‗o quê que é Entidade?‘ Eu nunca tinha

escutado esse termo, Entidade. Para gente era o irmão, doutor, doutor

Bezerra, irmão... ‗Entidade que palavra é essa?‘. Aí ela gritou, ela foi

tão assim, brava que eu fiquei com medo dela e eu fechei os olhos de

medo, porque ela apontou o dedo assim, sabe? E gritou, parecia que

ela ia me dar um tapa assim, sabe? Aí meu Deus! Aí eu fechei os

olhos, eu fiquei ali não sei quanto tempo. Eu lembro que eu estava

assim, eu tremia, tremia, tremia de medo, estava com medo com

aquela gritaria e coisa ‗e a minha mãe, minha mãe?‘ De repente, eu

só senti uma presença assim na minha frente que disse: ‗filha abra os

olhos, pode abrir os olhos‘. E eu não sabia se era para mim, porque

51

tinha muitas pessoas e eu fiquei de olhos fechados. Daí ele botou a

mão na minha cabeça e disse: ‗filha pode abrir os olhos‘, daí eu olhei,

estava aquele senhor que estava lá fora, só que diferente, só que

estava em outro, assim bem diferente do que ele. Aí ele falou assim:

‗o médium João não conhece você, mas eu conheço, sou Doutor José

Valdivino e você aqui vai fazer o mesmo trabalho que você faz lá

naquele lugar que você trabalha. Eu conheço você, fica tranquila‘. Aí

eu falei para ele: ‗posso ficar de olhos abertos?‘ E ele: ‗pode. Aí ele

ficou bem assim pertinho de mim, sentado ali e eu fiquei olhando,

estava curiosa. Não sabia, ficava olhando ele ali, atendendo todas

aquelas pessoas. E de repente lembrei de minha mãe, imagina hoje,

jamais eu iria fazer isso [risos]. Falei: ‗senhor, senhor, posso ir lá

pegar minha mãe?‘, aí ele falou: ‗pode‘. Aí eu peguei e saí... tudo ao

contrário, sai pela porta, não pode, não pode fazer o caminho inverso.

Enfim, e aí eu cheguei lá, bem na hora que eu cheguei minha mãe

estava na porta de entrada e ela olhou para mim e disse assim: ‗estou

me sentindo muito mal‘ e ela começou a chorar e caiu, bem na hora

assim, tuff caiu. Eu cheguei e ela caiu. Aí aquele senhor que tinha me

levado lá para dentro, o R. e mais um outro, levaram a mãe na frente

daquele senhor que era então, no caso, a Entidade que estava

atendendo. Aí ele estava diferente, estava com a voz bem calma e

falou: ‗sou o Dom Inácio‘, ele disse, outra Entidade e aí eu já não

estava entendendo mais nada, que eu estava acostumada com outra...

o Dr. Bezerra incorporava em um, outro incorporava em outro. E aí

minha mãe chegou. E ela tinha sido operada sem corte, é, sem

instrumento, mas estava o corte, na fila, aí ele mostrou o corte e disse:

‗filha vem aqui, eu operei você‘, daí ele pegou, pediu licença, puxou a

blusa e minha mãe estava com um corte bem no coração assim e

estava sangrando10. Daí ele disse: ‗eu operei você e eu quero ver você

e o casaca branca também, seu marido é o casaca branca? Quero ver

o casaca branca também na minha Casa‘. Ele olhou para mim e disse:

‗e você também filha‘. Daí a gente não entendeu nada e a nossa guia

tinha sumido. A gente não sabia, não sabia esse termo o que era

casaca branca para meu pai, sabe? E aí gente ta, ficou assim,

ninguém tinha dito assim: ‗oh se operar vai descansar‘, nada, a gente

ficou lá fora, tinha. era para tomar sopa, o pessoal falava: ‗tem que

tomar sopa, tem que tomar sopa‘. E nossa guia nada. A gente não

encontrava ninguém naquela multidão e quando eu vi o jeito que eles

faziam sopa, eu falei eu nutricionista, falei: ‗de jeito nenhum, minha

mãe não vai tomar essa sopa, eu vou comprar um cachorro quente

para gente‘. Aí eu botei a mãe em uma sombra, ela estava passando

mal. Botei ela debaixo assim, sentada na grama, fui pegar o cachorro

quente e a gente ficou. Daqui a pouco chamaram e começou aquela

movimentação para passar na fila de novo e a gente ficou: ‗que fila?‘.

E quando nós chegamos de novo, demorou, demorou e minha mãe

passando mal, passando mal e a mulher não vinha, não vinha, a guia.

E eu não sabia o que fazer, eu passei de novo ninguém tinha dito: ‗olha

não pode‘. Aí a gente foi na fila de novo, passamos para outra fila, que

era fila de segunda vez, a gente. Quando a gente chegou, a Entidade

era outra pessoa

,

brava, furioso [risos], o Dr. Augusto: ‗o que é que

10 Segundo Maes (2006), ―Em tais casos, os técnicos siderais operam no perispírito do enfermo; e o

‗duplo etérico‘ se encarrega de transferir para o corpo físico todas as reações específicas da

intervenção processada naquele‖ (MAES, 2006, p.154).

52

vocês estão fazendo aqui? Ela deveria estar descansando no ônibus‘.

Quando ele falou ‗descansando no ônibus‘, eu pensei: ‗como é que ele

sabe que a gente está de ônibus?‘. Aí eu falei: ‗mas a gente não

encontra a nossa guia‘. Ele disse: ‗é, mas ela não pode estar aqui, leve

ela para descansar no ônibus e vai lá que a guia vai estar lá esperando

vocês na porta‘. Nós chegamos no ônibus, e lá estava a mulher

esperando e aí ela disse: ‗Aonde é que vocês estavam?‘. E levou

minha mãe para o ônibus. Esse foi o nosso primeiro contato. No

ônibus, depois, na volta, ela nos explicou um pouquinho: ‗se ele

tivesse dito A-ba-di-â-nia é porque tu estava muito mal‘, eu pensei: ‗o

que é que eu tenho? Que eu tenho que‘... e aí a gente perguntou o

que era casaca branca, ela falou que é médico, ela disse: ‗não, é que

eles falam isso para médico‘ e aí disse que teria uma excursão para

cá no mês seguinte. Daí a gente depois entrou em contato com ela,

ela já tinha casado e não ia mais fazer excursão e passou para outra

pessoa que é a Zeli, que foi a pessoa que a gente começou a vir, isso

foi em abril. Em maio, dia 25 de maio foi a primeira vez que a gente

veio para cá [Abadiânia]. Aqueles ônibus levavam quase três dias,

quebrava, e quando nós paramos em Abadiânia na frente daquela

pousada que é Domingas, hoje, eu pensei: ‗nossa senhora, ninguém

merece isso daqui‘, era muito estranho, tudo era muito estranho,

assim, os quartos eram... a gente tinha que ficar com oito pessoas,

tinha um banheiro coletivo, tudo assim, muito sujo e tal. Mas, quando

a gente chegou aqui na Casa [emoção e voz embargada] parece

assim, que abriu o coração, sabe? Foi um choque... foi uma coisa

muito emocionante para todo mundo do ônibus. A gente chegou em

casa mesmo, sabe? Aí eu senti assim, que cheguei em casa (FC8,

grifos de ênfase).

O relato da FC8 é opulento com as circunstâncias do atendimento e com o

trabalho de João de Deus quando ele viajava para cidades distantes no interior do

Brasil, sem muita infraestrutura. A transcrição na íntegra do depoimento é justificada

pelo fato de se poder perceber diversas situações: o choque com a educação

kardecista, a importância dos FC na ajuda ao médium; o tratamento da família inteira,

a operação a distância ‗no local‘, a corrente rústica, a feitura da sopa, a flexibilidade

da Entidade, ‗a chegada em casa‘ e outras.

Em relação ao perfil dos FC, a partir da análise comparativa das

características de cada um, de como conheceram a Casa, é relevante argumentar que

alguns vieram porque estavam doentes, outros por curiosidade e outros pelo

sofrimento por doenças de entes queridos. Todos narram suas significativas

mudanças ao chegarem na Casa. Percebe-se que agem pelo livre-arbítrio e

espontaneamente realizam um trabalho na Casa; todos esses FC pesquisados se

mudaram para Abadiânia. Eles têm na Casa um aprendizado ímpar; concebem-na

como uma escola de espiritualidade e práticas da mesma. Trabalham e doam seu

tempo em retribuição, ajudando como foram auxiliados. Quando a FC8 chegou ao

53

campo, ela relatou que a música que tocava era a oração de São Francisco de Assis,

logo, aparentemente, os FC aplicam na prática que ‗é dando que se recebe‘.

Outro fato importante a ser relatado diz respeito a intensa emoção envolvida

em suas circunstâncias de vida, seja no que os motivou para irem à Casa, seja como

resultado na experiência da Casa e na rememoração ao narrar. São emoções fortes

de alegria e larga gratidão, expressas em espontaneidade ímpar. Acredita-se que tal

espontaneidade singela na entrevista narrativa não se deva apenas à personalidade

do[a] FC, mas à ‗ordem ou permissão de João de Deus em Entidade‘ de participarem

da entrevista, como a revelar este pesquisador ‗digno de confiança‘.

Passiflora

Sabe-se que passiflora é um pó que vem das folhas e caules do maracujá. O

portal da ANVISA [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] informa que esse produto

fitoterápico atua no sistema nervoso, gerando calma e favorecendo o período do sono,

por isso, não deve ser usado com álcool, pois potencializa seus efeitos, causando

problemas (ANVISA, s/d).

Na Casa de Dom Inácio, a passiflora é destinada a todas as doenças, sendo

receitada em capsulas somente pelas Entidades. Sua produção e embalagem estão

sob a responsabilidade de uma profissional farmacêutica, contratada pela Casa e

inscrita no Conselho Regional de Farmácia - CRF.

Como fonte principal do rendimento financeiro da Casa, a passiflora também

pode ser doada aos sem condições financeiras. Porém, somente a Entidade sabe

quando se deve fazer isso, ―um código na receita esclarece que, naquele caso, não

deve ser cobrado‖ (GARCIA, 2013, p.95). Registra-se que esta receita não se trata de

algo semelhante a uma receita médica, mas são garranchos desenhados em um

pedaço de papel branco. Tal ‗receita‘ serve para que o operado passe na farmácia e

adquira a passiflora. Alguns garranchos rabiscados de modo diferente revelam que a

pessoa ganhou o remédio, não precisando pagar por ele; porém, poucos percebem

os sinais diferentes entre eles.

Na Casa, diz-se que a passiflora é energizada pelas Entidades e sua

destinação é única para cada pessoa. O FC4 relata que depois de extrair a próstata,

evitando tratamentos convencionais invasivos, ele foi consultar a Entidade se deveria

fazer radioterapia ou não; esta lhe disse: ―daqui eu já me adiantei‖ (apud FC4). E

receitou passiflora, mas isto o deixou um pouco envergonhado: ―ela me deu [risos],

54

inclusive me deu dois tubos de graça... pô, tô mal hein, por ser de graça fica chato

né?‖. Atualmente este FC faz somente uso da passiflora. Não é raro encontrar curas

somente com o uso da passiflora (GARCIA, 2013). Para aqueles que não acreditam

na energização da passiflora, João de Deus comunica: ―se a pessoa não acreditar nos

efeitos espirituais da passiflora, nenhum mal haverá para o organismo a sua ingestão‖

(apud GARCIA, 2013, p.141).

Antes da passiflora, as Entidades receitavam garrafadas, contudo:

A fiscalização contínua da Vigilância Sanitária, os contratempos no

manuseio das plantas e na obtenção de garrafas vazias, a adequada

limpeza antes de engarrafar a infusão e outros reiterados problemas

levaram à substituição das garrafadas pela passiflora (GARCIA, 2013,

p.70).

Um FC chamado Antão, forte e corpulento, era assistente pessoal há mais de 30

anos do médium João. Antão tratava-se de uma espécie de segurança do médium, mas a ele

eram dados vários serviços, inclusive a fabricação das garrafadas. Seu relato a seguir é

abundante em detalhes na feitura, energização e transporte das ervas prescritas depois da

intervenção, ainda em 2008:

Os suplementos de ervas costumavam ser apresentados em

forma líquida. Nós misturávamos o preparado em grandes tonéis e o

transferíamos para garrafas de vidro pequenas. A produção era um

trabalho contínuo de amor. Todas as garrafas eram enfileiradas nas

prateleiras. Os médiuns da farmácia são treinados pelas Entidades.

Quando eles trazem a prescrição (antes na forma líquida, agora em

cápsulas à base de passiflora), ela está imbuída de uma energia

própria para cada pessoa. O líquido mudava de cor, de consistência e

até de Aroma. Como nós próprios o preparávamos com a mesma

mistura de ervas, sempre ficávamos perplexos ao abrir as garrafas

prescritas para nós e constatar que cada uma delas era diferente e

exclusiva. Elas eram de fato abençoadas pessoalmente para cada um

de nós. Dava para ver. Não é possível constatar as mudanças no caso

das cápsulas, mas com elas acontece a mesma coisa. Quando o

,

médium João viajava para outras regiões do país, nós enchíamos dois

caminhões com garrafas do preparado. Eu tinha de dirigir com muito

cuidado em estradas esburacadas para que as garrafas não se

quebrassem.

Às vezes ficávamos sem as ervas e precisávamos preparar mais

durante a noite para a sessão da manhã. Isso muitas vezes era feito

em barracas improvisadas e nos climas mais inclementes. O médium

João ficava de pé a noite toda conosco. Ele nunca ia embora enquanto

o trabalho não tivesse acabado, e ficava satisfeito quando todos

tinham um lugar confortável para dormir. Muitas vezes, o dia

amanhecia e nenhum tinha ido dormir. Alguns ainda continuavam

preparando as ervas enquanto os outros estavam começando a

preparar a sessão da manhã. O médium João fazia café ou nos

atendia. Eu tenho grande devoção por esse homem bom e generoso.

55

Ficarei ao lado dele até que faça a transição e se junte a Dom Inácio

e ao Dr. Augusto nos reinos espirituais. Mas não vamos falar nisso. O

médium João ainda vai viver muito tempo (apud CUMMING e

LEFFLER, 2008, p.113).

Refeitório

Todas as quartas, quintas e sextas-feiras, as pessoas são convidadas a tomar

uma sopa, distribuída gratuitamente aos médiuns auxiliares, aos[às] Filhos[as],

frequentadores e funcionários da Casa11. Estima-se que sejam servidos em média

cento e cinquenta mil pratos de sopa anualmente (GARCIA, 2013). Em 1985, em

entrevista ao programa televiso 3ª Visão, o médium João, então conhecido como João

de Abadiânia, afirmou que distribuía cinquenta e oito mil pratos de comida por ano

(PROGRAMA, 1985, s/p).

Assim como a água é fluidificada – e está disponível para venda, não acima

do preço do mercado –, a sopa igualmente é energizada. Por isso, é recomendada

para todos em tratamento. Alguns repetem o prato ou levam às pousadas para se

alimentarem depois. Quanto aos custos da sopa, ―as despesas são custeadas pela

própria Casa, com a receita obtida a partir da venda de medicamentos, produtos da

lanchonete e da livraria, bem como as doações. Quando necessário, o médium João

arca com as despesas‖ (GARCIA, 2013, p.98)12.

11 Como a prisão do médium causou inúmeros contratempos na Casa e na cidade, Portinari (2019)

salienta que a sopa foi extinta.

12 João de Deus mantém uma outra instituição, a Casa da Sopa [ou Casa de Alimentação] do outro

lado da cidade. Nas terças, quartas e quintas-feiras, esta Casa da Sopa serve em média 900 pratos

por dia (GARCIA, 2013). Além da alimentação, também disponibiliza roupas aos necessitados [para

quem está com a roupa do corpo suja, a Casa lava-a e a devolve em pouco tempo], material escolar,

material de higiene, fraldas e outras, o empréstimo do salão para festas à comunidade, e para a

realização quinzenal do baile da terceira idade – por vezes o médium João reitera ao público seu sonho

de abrir uma Casa do Idoso, e o desejo de fazer isso antes de morrer (DIÁRIO DE CAMPO,

21.06.2018). É significativo assegurar que, no grande frontispício da Casa da Sopa, há ilustre pintura

do rosto de Dom Inácio e, sobre esta, a frase: ―Obrigado Abadiânia‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.06.2018),

literalmente, um agradecimento do médium à cidade. Uma FC deu seu depoimento sobre este lugar:

―João de Deus quer ver o lado bom das pessoas, e tem uma missão grandiosa. Agradeço a Deus por

mais um ano ao seu lado. Sua esposa administra a Casa da Sopa, um lugar que fornece café da manhã,

almoço, sorvete, roupa e material escolar às pessoas necessitadas, localizado do lado de lá da rodovia.

Aqui, todos são bem vindos. A gente não muda, mas pode ser uma pessoa melhor. Assim, esqueça

seu eu e pense no nós. Construa um jardim‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 22.06.2018, grifo de ênfase). Após

visitarmos e constatarmos o extenso ofício da Casa da Sopa, conhecemos o senhor que toma conta

do local e, em conversa com o mesmo sobre o tema ‗ninguém é melhor que ninguém‘, com o provérbio

italiano ‗terminado o jogo, o rei e o peão voltam para mesma caixa‘, ele arremata espirituoso: ―lá

embaixo vai de um a tudo‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.06.2018); rimo-nos e recordamos de personagens

de Guimarães Rosa.

56

Em conversa com um FC que trabalha como voluntário na cozinha do

refeitório, ele, transbordando em alegria, mostrou-nos um bilhete que havia recebido

com uma rosa:

Olá amigo, meu nome é Maria. Eu venho de Melbourne, Austrália. Eu

saio no sábado e quero dar essa rosa para você como gesto de

agradecimento pela maravilhosa sopa que você tem me servido. Tome

cuidado. Desejo-lhe saúde e felicidade. Eu não falo português, apenas

inglês. Maria, 29 de março de 2018 (DIÁRIO DE CAMPO, 04.04.2018).

Sala de diplomas, certificados e fotos

João de Deus é mais conhecido internacionalmente que no Brasil

(GUTERRES, 2013), mas por ter trabalhado no exército e ter passado por todas as

capitais do país, recebeu diplomas e certificados, além de outras homenagens, em

muitas delas, após seu trabalho. A sala que recebe esses documentos, atualmente,

está ao lado da livraria, com suas paredes abarrotadas desses registros.

Além de diplomas e certificados de relevantes serviços prestados, há os de

cidadão emérito, visitante ilustre, cidadão honorário, colaborador benemérito, honra

ao mérito, título de amizade, voto de aplauso, moção congratulatória, sócio fundador

de várias instituições, todos em nome de João Teixeira de Faria. Durante as

observações na Casa, foi possível verificar representações de inúmeras instituições

como: câmaras municipais de várias cidades brasileiras e estrangeiras (cidades do

Peru e Portugal); Marinha do Brasil [vários dessa corporação]; homenagem única de

um padre; Maçonaria [alguns]; Associação de Agentes Ambientais; Exército Brasileiro

[vários]; Federação independente da Umbanda [alguns ligados a umbanda]; Polícia

militar [alguns]; Polícia civil [alguns] e Alcoholics anonymous (DIÁRIO DE CAMPO,

10.01.2018).

Há também quadros de medalhas: dois das Forças Armadas Brasileiras e dois

da Associação dos Escoteiros do Brasil. Nessa sala ainda há dois quadros grandes,

um com uma reportagem sobre João de Deus e outro com inúmeras fotos menores

[mais de 30] de João de Deus junto a personalidades famosas da televisão brasileira,

sendo a maioria de atores e atrizes da Rede Globo, do SBT e de outras emissoras.

Finalizando, há mais duas fotografias emolduras de tamanho médio, uma de João de

Deus sorrindo e outra de sua mãe, dona Iuca (DIÁRIO DE CAMPO, 10.01.2018).

57

Sala de aparelhos adjutórios

Quando a Entidade dá atendimento a alguma pessoa com muleta, bengala ou

algum outro aparelho adjutório, ela normalmente determina que a pessoa descarte tal

apoio e vá embora caminhando. Comumente, a pessoa dá algumas cambaleadas e

sai; isto foi testemunhado na película que o Programa 3ª Visão registrou (1985). ―Pode

acontecer, também, da Entidade dizer para a pessoa em cadeira de rodas: ‗levante e

ande‘, o que ocorre. De igual forma, são retirados outros aparelhos de apoio para

pescoço, coluna vertebral, braços e pernas‖ (GARCIA, 2013, p.102).

Garcia (2013) complementa que não há explicação científica para isto, tudo

simplesmente acontece. A própria Entidade afirma que não se trata de milagre, mas

de ‗poder de Deus‘. Apesar de João de Deus querer separar ‗milagres e poder de

Deus‘, ainda assim, suas interpretações não escapam do campo religioso.

Depois que desprezam os apoios, muitas pessoas os levam para doar às

associações filantrópicas, outras guardam de lembrança ou deixam na Casa, para

possivelmente expressarem a cura. O FC4 trouxe este relato de doze pessoas, de

uma única vez, que abandonaram a bengala, ocorridos no ano de 2017:

Eu conheço tanta gente que a Entidade curou, Nossa Senhora... Uma

vez eu tava na corrente, e a Entidade falou: ‗quem quiser pode abrir

os olhos‘; doze pessoas de bengala, todos doze jogaram a bengala no

chão e saíram andando, todos os doze. Isso foi no ano passado. Você

,

escutava, básh! A bengala, básh! A bengala, básh!... dos doze. A

Entidade mandou a turma reunir todos os de bengala numa fila só, aí

passou por eles e mandava jogar: ‗Joga bengala e vai embora, vai

andando, você pode andar, vai andando‘; o cara jogava a bengala e

saia andando... Uma vez teve uma moça, acompanhada da mãe e do

pai dela. Ela tava na cadeira de roda. Aí né, eu escutei a Entidade

falar – eu tava na corrente – escutei ela falar: ‗levanta dessa cadeira,

levanta dessa cadeira que você vai andar, você pode andar, pode

andar‘. Aí, daqui a pouco, a Entidade me puxou pelo braço: ‗pega ela,

dá 3 voltas na Casa com ela‘. Eu dei três voltas com ela na Casa, e

ela andando e eu chorando [risos emocionados], os dois chorando e a

mãe chorando também. Ah, tá louco sô, é muita emoção demais...

Ishi, a sala das muletas tá lotada, tá lotado lá... Ah vou te contar... Tem

muita gente que leva [o aparelho] de lembrança, sei lá... Ah, mas é

bom, é tão gostoso ver, Nossa Senhora. Eu vou contar viu, é muito

lindo demais isso aqui viu (FC4, grifos de ênfase).

Sala de vídeo e som

―De uns tempos para cá, estamos gravando muitos relatos das pessoas‖

(DIÁRIO DE CAMPO, 08.02.2018). Esta foi a fala de uma FC que trabalha com os

58

equipamentos de filmagem e áudio, na qual também fizemos uma gravação, contando

um pouco de nossa história e de nosso intento na pesquisa na Casa.

Tal FC está responsabilizada, entre outras, de editar e produzir os DVDs que

estão disponíveis para compra na livraria. ―Quando passamos pela Entidade com a

intenção de solicitar permissão para as entrevistas, a mesma nos deu o livro

Experiências espirituais de uma vida, de Carlos Joel Castro Alves e um DVD, 15

depoimentos e 15 intervenções, de 2017‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 22.02.2018).

1.1.1 Algumas considerações sobre as objetivações da Casa

A intenção foi evidenciar as objetivações – especialmente as físicas, mas

também as simbólicas – que João de Deus e os FC realizam. Sabe-se que muitas

outras pessoas também as fazem, mormente o ex-prefeito de Abadiânia e atual

administrador da Casa de Dom Inácio desde 2004, o senhor Hamilton Pereira. Ele

relata que o médium João trouxe inúmeras edificações à cidade:

Abadiânia deve o seu desenvolvimento e prosperidade a esse homem

extraordinário. O progresso e crescimento muito necessários dessa

cidade ocorreram simplesmente graças à presença do médium João.

Tem ocorrido um influxo de novos moradores, que construíram as

suas casas e abriram novos negócios. O médium João patrocina

muitos projetos nesta cidade, ligados principalmente à força policial e

à segurança. Há apenas 2 anos, ele doou quatro motocicletas para a

polícia civil. Faz doações generosas a pessoas carentes, oferecendo

cestas básicas a famílias de toda a região e contribuições em dinheiro

para a educação e projetos habitacionais. Ele também dá emprego

seguro na Casa para muitas pessoas, nas cozinhas da sopa e nas

suas fazendas. Neste ano inaugurou outra cozinha da sopa perto da

entrada da cidade. Eu entendo esse homem generoso, bom e

complexo e acho que é importante que eu fique ao lado dele. Aceitei

o cargo porque respeito e amo meu amigo. Nós nos conhecemos há

mais de 30 anos. A missão dele não é fácil, e espero ajudar a aliviar

um pouco o seu fardo (apud CUMMING e LEFFLER, 2008, p.94).

Há muitas outras ‗construções‘ na Casa como mirante, cachoeira, área de

descanso, jardim – com vários bancos de madeira rústica doados por famílias – local

onde está ―exposto um busto de Dom Inácio, que fica rodeado de flores, terços,

oferendas, cristais e orações dos frequentadores. Alguns param em frente, colocam

as mãos no busto e rezam‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 23.11.2017). Há também

lanchonete, salas de banho de cristal, livraria, ponto de táxi, área de estacionamento,

depósito, caixas de doações, segurança na Casa, assessoria de imprensa e outras.

59

Aqui a pesquisa tem como pauta a atuação mais profícua, nas realizações dos FC

junto a João de Deus.

Pelas ‗obras‘ da Casa, pôde-se perceber um movimento de pessoas indo e

vindo sem parar, entrando nos lugares, saindo, cumprimentando-se, abraçando-se, –

alguns abraços demorados – conversando nos arredores, pessoas com roupas

diferentes do costume brasileiro, pessoas sorrindo, outras chorando, início de novas

amizades, contatos inesperados, feitura de relacionamentos íntimos e outros. Amplos

espaços de socialização e terapia, meditações e novas configurações.

Aparentemente, todas as mudanças na Casa atendem as necessidades das pessoas

presentes na mesma.

De modo geral, todas as construções físicas ou simbólicas da Casa estão

envoltas de cultura, de algo maior que dê sentido às pessoas. Desta forma,

procurando entender tais edificações, foi realizado um estudo teórico da cultura, de

sua relação dialética entre objetivação, exteriorização e interiorização

1.2 Cultura como construção ininterrupta

Ao contrário de outros animais, o ser humano nasce inacabado. Torna-se

humano tanto no aspecto biológico como no mental. Dessa maneira, constrói um

mundo para si, físico e cultural. A socialização – chamada ‗segunda natureza‘ – cria a

humanidade e coloca-a em perspectiva de manutenção desse espaço cultural. ―A

sociedade é, portanto, não só resultado da cultura, mas uma condição necessária

dela‖ (BERGER, 1985, p.17). Isto posto, deduz-se que instituições, estruturas,

funções, padrões, linguagens, simbologias, valores sociais não existem por si

mesmos, mas são frutos das atividades de exteriorização, objetivação e

interiorização13.

Como visto anteriormente, Berger e Luckmann (2013) concebem que a

exteriorização [a manifestação do mundo nas atividades físicas e ou mentais dos

humanos], juntamente com a objetivação [produtos resultantes de atividades físicas e

mentais] e a interiorização [que são as estruturas do mundo objetivo transformadas

em estruturas mentais e simbólicas] totalizam o mundo cultural. Por conseguinte, é no

13 Os termos ‗exteriorização‘ e ‗objetivação‘ foram extraídos de Hegel, principalmente da obra ‗Lições

sobre história da filosofia‘. O termo ‗interiorização‘ foi extraído da Psicologia Social Americana,

mormente de George Mead (BERGER, 1985).

60

movimento dialético dessas três instâncias que a sociedade se torna produto humano

[exteriorização], realidade ‗única‘ [objetivação] e o humano, produto da sociedade

[interiorização]. Para tais autores, o ser humano atua no mundo social e é

reciprocamente atuado por este. Assim, ―as instituições, os papéis e identidades

existem como fenômenos objetivamente reais do mundo social, embora eles e este

mundo sejam ao mesmo tempo produções humanas‖ (BERGER, 1985, p.26).

O agrupamento social impõe seu poder coercitivo ao humano, que nasce e

morre dentro de uma cultura, sendo inescapável sua condição. Sobre os mais

recalcitrantes, ―a sociedade dirige, sanciona, controla e pune a conduta individual‖

(BERGER, 1985, p.24), e através de mecanismos de controle social, busca ‗pôr na

linha os indisciplinados‘. Cabe a estes perceberem ‗a realidade‘ e se adequarem.

Assim, se a realidade social prevê espíritos, então espíritos existem, se não, chancela-

se imaginação, delírio, fé e outros ‗não prováveis‘. Ou, se a maioria das sociedades

acredita que almas dos mortos existem, mas que não têm influência sobre os vivos,

então assim é crido. A realidade passa a ser o que a sociedade chancelar. O indivíduo

vê-se obrigado a reconhecer ‗a realidade‘ que a sociedade ou grupo social diz ser.

Segundo Berger (1985), a realidade do grupo passa a ser coercitiva.

A força opressiva do social não estaria propriamente na violência física. ―A

coercitividade fundamental da sociedade está não nos mecanismos de controle social,

mas sim no seu poder de se constituir e impor como realidade‖ (BERGER, 1985, p.25).

Isto nos leva a concluir que existem várias realidades, sendo a mais correta

,

aquela

que atende aos interesses do grupo ou da sociedade. Mesmo assim, não raro no meio

acadêmico, evidenciam-se múltiplas intepretações de um mesmo fenômeno, havendo

nessa coercitividade possibilidade de criação de outras realidades.

Deste modo, a cultura internaliza valores, ações e formas de pensar que estão

presentes nas pessoas em todo e qualquer aspecto, seja externa ou internamente.

Para Grigorowitschs (2008), é nesse movimento de internalização-exteriorização, de

origem de conflitos e aceitações, que se constrói nosso self individual, revelando a

dialética entre realidade objetiva [mundo social] e a realidade subjetiva [identidade

pessoal].

Diante desse conflito, entre o que se pensa e a realidade, ou entre

interiorização, externalização e objetivação, um[a] Filho[a] da Casa apresentou o caso

de um sujeito cético que passou a ter uma posterior aceitação da cura por João de

Deus: ―Pois é, tu me conhece, sabe que não acredito em nada, e eu fui com esse meu

61

colega que tinha um tumor na cabeça e ficou curado‖ (apud FC5). Por essa

externalização, percebe-se que a cultura ocorre no coletivo e se reflete no particular.

A pessoa pode-se ter sido educada para não acreditar em médium, muito menos que

esse cura, ou não crer que um médium possua qualidades sagradas e, talvez,

curativas. Nesse sentido, as vivências e experiências fortalecem um ponto de vista

favorável, ou não.

Inspirado em Max Weber, Geertz compreende cultura como:

Um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em

símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas

simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam

e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida

(GEERTZ, 1989, p.66).

Criador de uma teoria interpretativa da cultura, para Geertz, a cultura –

necessariamente mesclada ao social e psicológico – tece teias de significados que

enredam quem vive sob ela. Para esse pesquisador, que busca tais significados, não

cabe apenas a observação do seu objeto, mas envolver-se nas camadas de seu

significado, analisá-lo. Porém, a cultura não deve ser encarada como ciência exata e

nomológica, mas como ciência interpretativa, isto é, como um conhecimento que

busca ir ‗além da camada superficial‘, apesar de entender a ilusão da verdade única

ou da objetividade pura. Além da superfície, para Geertz (1989), diz respeito não às

definições dicionarizadas, mas à observação etnográfica do objeto. Quer saber o que

é dado objeto? Saia a campo para estudá-lo na prática e, como bom etnógrafo,

perceba a hierarquia estratificada de estruturas significantes, ou seja, um conjunto de

intepretações que caminham deduzindo novos argumentos.

Ao abordar cultura, não se almeja somente sua definição, mas o emaranhado

que o pesquisador se depara ao destrinçar os fios da teia, evidenciando que a cultura

é um macro tecido interligando inúmeros pontos equidistantes entre si, ou distantes

aparentemente. Tal tecido não está finalizado, mas em construção ininterrupta; seja

inventando novas interpretações – criando cultura – ou buscando ‗rasgar o tecido‘,

incorporando novos significados.

Sob uma abordagem fenomenológica, Geertz (MICHEELSEN, 2015)

assemelha-se a Berger e Luckmann (2013) quando este afirma ser a linguagem uma

das instituições mais fundamentais da humanidade, pois é por meio dela que se

constroem tecidos ou edifícios simbólicos, presentes em todo momento da existência,

62

do nascimento à morte. Desta forma, Geertz compreende símbolos à maneira de

Pierce, ―signos interpretáveis‖ (GEERTZ, 1989, p.10) e a cultura é justamente um

conjunto de sistemas entrelaçados de signos – os quais representam algo para

alguém – que fornecem significados e sentidos de vida e são expressos na tríade

exteriorização, objetivação e interiorização.

Por conseguinte, esse antropólogo estadunidense enxerga a cultura não

como um conjunto de padrões de comportamentos, mas ―como um conjunto de

mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções [que os engenheiros de

computação chamam ‗programas‘] – para governar o comportamento‖ (GEERTZ,

1989, p.32, grifo do autor). Tais mecanismos, como visto, são transmitidos através de

símbolos, carregados de significados na tradução de toda situação social. Eis uma

ilustração de símbolo:

O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou

indicado num programa de computador, é um símbolo. A cruz também

é um símbolo, falado, visualizado, modelado com as mãos quando a

pessoa se benze, dedilhado quando pendurado numa corrente, e

também é um símbolo a tela ‗Guernica‘ ou o pedaço de pedra pintada

chamada ‗churinga!‘, a palavra ‗realidade‘ ou até mesmo o morfema

‗ing‘. Todos eles são símbolos, ou pelo menos elementos simbólicos,

pois são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência

fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de ideias,

atitudes, julgamentos, saudades ou crenças (GEERTZ, 1989, p.68,

grifos do autor).

Como na cultura, os signos se montam, somam e interpenetram; é justamente

a montagem desses signos que leva à investigação da força religiosa na cultura, visto

o surgimento do impulso direcionador e mantenedor da ação, compreendida como

‗sagrada‘. É o que acontece na Casa de Dom Inácio.

1.3 Força religiosa

Especialista em Durkheim, Setton (2008) considera a religião como matriz

cultural, isto é, a religião arquiteta a consciência produzindo valores morais e

identitários. Como instituição socializadora, a religião cria padrões de pensamento e

ações, ―bem como um sistema de disposições orientador de condutas‖ (SETTON,

2008, p.16). Desta forma, sendo matriz cultural, a religião elabora atividade material e

simbólica, produzindo significados. Estes, traduzidos em crenças, favorecem a

constituição do ser humano, dando-lhe individualidade, volição.

63

Diante disso, é notória a força da religião enquanto constituidora de sentidos,

preponderantemente, sentidos éticos e morais. Mesmo havendo certa liberdade de

arbítrio aos crentes, são negociados comportamentos específicos e legitimados a

priori, o que facilita aspectos tensos ou autoritários (SETTON, 2008). Por seu caráter

contraditório de ora impor atitudes e ora oportunizar aquisição de conhecimentos

emancipatórios, não se desmerece o caráter ideológico dessas visões de mundo, ou

seja, ideologia como realidades subjetivas construídas para atender interesses, sejam

coletivos ou privados.

Assim, ideologia religiosa pode ser expressa em dois sentidos: no primeiro,

sob o olhar marxista de falsear a consciência no atendimento a interesses de grupo;

e, no segundo, como categoria ampla, seja do indivíduo, seja da instituição. Para

Marx, a ideologia funciona para mascarar ou inverter as reais causas das contradições

sociais; ela é um produto puramente mental, tendo por fim acalmar consciências

insatisfeitas diante de realidades aparentemente prazerosas (BOTTOMORE, 1988, p.

294). Logo, diante da pergunta da pessoa X: ‗por que alguns vivem na opulência em

meio a tanta miséria?‘. A pessoa Y responde ideologicamente: ‗todos temos liberdade

e igualdade perante Deus; cada um constrói sua vida como quer‘. Possivelmente, a

pessoa X sai satisfeita com a resposta. Isto evidencia a realidade concreta da miséria

culpabilizando os próprios miseráveis e enaltecendo os opulentos, como se não

houvesse relação de causa e efeito da riqueza de uns como resultado da exploração

e miséria de outros, demonstrando como a ideologia constrói realidades que atendem

grupos de poder social, em detrimento daqueles que são submissos.

No segundo sentido, a ideologia para o sociólogo Karl Mannheim é

compreendida não como construções linguísticas da classe dominante para falsear

consciências subalternas, mas como manutenção de uma realidade simbólica propícia

aos interessados [dominante

,

interpretativa ou simbólica de Clifford Geertz e Mircea Eliade. Tais

teorias aclararam que há uma estrutura social imperando nas vidas das pessoas em

sociedade, ao mesmo tempo denotam a construção simbólica do ethos e da visão de

mundo de cada um. Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa de

natureza qualitativa, e abrangeu a pesquisa bibliográfica, com autores brasileiros e

estrangeiros; e a pesquisa etnográfica, tendo como locus de pesquisa a Casa de Dom

Inácio de Loiola; nessa vivenciou-se a observação participante [acompanhado pelo

Diário de Campo], bem como se realizou 8 entrevistas narrativas em profundidade

com os[as] Filhos[as] da Casa, embasadas por um roteiro norteador. Os dados

coletados revelaram como resultados da pesquisa: as intervenções espirituais,

proporcionando sentidos e significados, serviram de porta de entrada para os[as]

Filhos[as] da Casa, mas se tornaram apenas um detalhe em novo ethos e visão de

mundo encontrados, vivenciados cotidianamente pelos mesmos junto à

espiritualidade. A cura – envolta em rede ampla de sentidos e significados –, buscada

para seus corpos e ou suas mentes, se transformou em um sentido de vida que se

leva em conta a inter-relação constante entre causa e efeito com o progresso moral e

intelectual de cada um para consigo e todos; sendo o desenvolvimento e a prática do

amor não somente um projeto, mas uma vivência imperiosa, com ou sem João de

Deus.

Palavras-chave: 1. João de Deus. 2. Casa de Dom Inácio. 3. Intervenções espirituais.

4. Filhos[as] da Casa. 5. Sentidos e significados. 6. Espiritismo.

ABSTRACT

CARVALHO, Ricardo Delgado de. Spirituality, suffering and transformation:

senses and meanings of spiritual interventions by John of God, in the perception

of the Sons of the House of Dom Inácio in Abadiânia, Goiás. 2019. f. 356 (Doctoral

Thesis in Sciences of Religion) - Pontifical Catholic University of Goiás - PUC-GOIÁS

- Goiânia-GO, 2019.

The present thesis aims to talk about the spiritual interventions performed by John of

God and the general objective to understand and analyze the senses and meanings

of the Sons [daughters] of the House arising from the spiritual interventions performed

by John of God in Abadiânia / GO. This general objective was raised from the problem

question to be used as a guideline in the development of the work. Studies done show

that the medium John of God has served about 11 million people in search of healing

for their illnesses and or relief to their minds. The concepts adopted as theoretical

referential are: Spiritual Interventions, Senses and Meanings and Spiritism, grounded

in the areas of Religious Sciences, especially in anthropology and sociology. As a

theoretical framework we used the fundamental concepts of Peter Berger and Thomas

Luckmann in the social construction of reality, associated with the interpretive or

symbolic theory of Clifford Geertz and Mircea Eliade. Such theories have clarified that

there is a social structure prevailing in the lives of people in society, at the same time

they denote the symbolic construction of the ethos and the world view of each one.

From the methodological point of view, it is a qualitative research, and it covered

bibliographical research, with Brazilian and foreign authors; and the ethnographic

research, having as a locus of research the House of Dom Inácio de Loiola; where the

participant observation [accompanied by the field diary] was experienced, as well as 8

in-depth narrative interviews with the Sons [daughters] of the House, based on a

guiding script. The data collected revealed as results of the research: spiritual

interventions, providing senses and meanings, that served as a gateway for the Sons

[daughters] of the House, have become just a detail in a new ethos and worldview

encountered, lived daily by them together with spirituality. The cure - wrapped in a wide

network of senses and meanings -, sought for their bodies and / or their minds, has

become a sense of life that takes into account the constant interrelationship between

cause and effect with the moral and intellectual progress of each to himself and to all;

the development and practice of love being not only a project but an imperious

experience, with or without John of God.

Keywords: 1. John of God. 2. House of Dom Inácio. 3. Spiritual interventions. 4.

Sons[daughters] of the House. 5. Senses and meanings. 6. Spiritism.

LISTA DE FIGURA

Figura 1 – Planta da Casa de Dom Inácio........................................................ 32

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AME-Brasil Associação Médico-Espírita do Brasil

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CEPA Confederação Espírita Pan-Americana

CRF Conselho Regional de Farmácia

DNA Ácido desoxirribonucleico

DORT Doenças osteoarticulares relacionadas ao trabalho e acidentes

EQM Experiências de Quase-Morte

EUA Estados Unidos da América

FC Filho(a) da Casa

FEB Federação Espírita Brasileira

MCA Medicinas Complementares e Alternativas

MPF Ministério Público Federal

OMS Organização Mundial da Saúde

PI Princípio Inteligente

PNPIC Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares

PSA Prostate-Specific Antigens (ou Antígenos Específicos da Próstata)

PUC-GO Pontifícia Universidade Católica de Goiás

SBT Sistema Brasileiro de Televisão

SPEE Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

STF Superior Tribunal Federal

SUS Sistema Único de Saúde

UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora

UNESP Universidade Estadual Paulista

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

USP Universidade de São Paulo

UTI Unidade de Terapia Intensiva

SUMÁRIO

https://brasilescola.uol.com.br/biologia/dna.htm

INTRODUÇÃO................................................................................................... 13

CAPÍTULO I – CULTURA COMO CONTEXTO................................................. 23

1.1 OBJETIVAÇÃO DA CASA DE DOM INÁCIO DE LOYOLA..................... 24

1.1.1 Algumas considerações sobre as objetivações da Casa................... 58

1.2 CULTURA COMO CONSTRUÇÃO ININTERRUPTA................................ 59

1.3 FORÇA RELIGIOSA.................................................................................. 62

1.4 OS SÍMBOLOS E SUAS CONSTRUÇÕES................................................ 71

1.4.1 Vigoroso simbolismo religioso............................................................ 78

1.5 A LINGUAGEM CONSTRUINDO VERDADES E REALIDADES.............. 81

1.5.1 Interiorização e exteriorização na Casa de Dom Inácio de Loyola... 85

1.6 OBJETIVAÇÕES NA VIDA DE JOÃO TEIXEIRA DE FARIA, O JOÃO

DE DEUS...........................................................................................................

97

1.6.1 João de Deus aos olhos dos(as) Filhos(as) da Casa........................... 112

CAPÍTULO II – SENTIDOS E SIGINIFICADOS DO ESPIRITISMO................... 152

2.1 SENTIDOS E SIGNIFICADOS................................................................... 152

2.2 O ESPIRITISMO É UMA RELIGIÃO?........................................................ 157

2.3 ETHOS RELIGIOSO E VISÃO DE MUNDO............................................... 171

2.3.1 Ethos e visão de mundo espírita........................................................... 174

2.3.2 Ethos e visão de mundo dos(as) Filhos(as) da Casa (espiritualista,

da Nova Era).....................................................................................................

187

2.4 KARDEC E A MEDIUNIDADE.................................................................... 200

2.4.1 Mediunidade espírita............................................................................. 205

2.5 MÉDIUNS CURADORES........................................................................... 211

2.6 ETIOLOGIA E ETOLOGIA DAS INTERVENÇÕES

,

- total - ou dominado - particular]; ―A aniquilação é agora

mais penetrante, visto que a ofensiva se dá no nível noológico, solapando-se a

validade das teorias adversárias pela demonstração de que são apenas uma função

da situação social geral prevalecente‖ (MANNHEIM, 1986, p.95). Mannheim denomina

aniquilação, a destruição de uma compreensão única de ideologia. Corroborando

Mannheim, como qualquer modo de pensamento vivente, Althusser afirma ser a

ideologia ―uma estrutura imanente do imaginário na sociedade‖ (MOTTA e SERRA,

2014, p.128), ou seja, impossível viver sem.

64

A pujança ideológica da religião se mostra justamente em sua noosfera para

construir realidades pretendidas, mas não simples realidades, e sim sagradas. Nessa

mesma linha, porém, na tendência da análise do discurso, Orlandi (2003) entende que

existindo interpretação, há sentido, e tendo este, percebe-se a ideologia. Esta é fruto

das condições históricas e do simbólico, que cedo ou tarde, dependendo o caso,

naturaliza-se na linguagem. ―A ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a

constituição do sujeito e dos sentidos‖ (ORLANDI, 2001, p.46). Como constituição dos

sujeitos sociais, a ideologia cria realidades, sejam religiosas ou não.

Ao analisar esse último sentido ideológico, é possível apresentar o caso do

médico Roger Queiroz, que concebia a Casa de Dom Inácio como um antro de

vigarice, o que era verbalizado à sua mãe quando ele a levava até lá. Em certa

ocasião, a mãe o convidou para conhecer o recinto, mas Roger Queiroz alegou falta

de tempo; e ela arrematou: ―Agora são 9h e você nunca tem tempo, mas quando for

15h ou mais você entenderá‖ (DEPOIMENTO, 2017, s/p). O relato esclarece uma

mudança ideológica em nova constituição, a qual ocorreu após o ‗falecimento e

ressurreição‘ do médico, comunicado no palco na Casa de Dom Inácio em 2012. É

justamente a edificação dessa constituição religiosa que a realidade se transforma em

ideologia, fortalecida em impressões pessoais e acontecimentos posteriores que

coincidem com tais impressões.

Segundo João de Deus, que se apresentou ao público, a mãe

do Doutor Roger [...], que já era falecida, havia sido frequentadora fiel

da Casa de Dom Inácio de Loyola no início da década de 1980. Quem

a levava de Brasília, onde morava, era o filho, então estudante de

medicina e totalmente cético; para ele João de Deus era charlatão. Em

1995, quando já era um médico atuante, casado e pai de um bebê de

6 meses, o Dr. Roger teve que se submeter a uma cirurgia de

revascularização cardíaca, que não foi bem-sucedida. Em 5 de

Março de 1995, exatamente às 10h45, os médicos declararam sua

morte e lhe deram um atestado de óbito. Quem ligou para sua esposa

foi um médico amigo e compadre.

Ao receber a notícia, sua esposa, que também era frequentadora

da Casa de Dom Inácio de Loyola, imediatamente telefonou para lá

explicando a situação dramática em que se encontrava.

Atendida [por João de Deus], recebeu a instrução de que o corpo

deveria ficar intocado até às 15h15, quando algo aconteceria. Essa,

obviamente, é uma condição muito difícil de ser cumprida, já que, em

qualquer hospital, as UTIs estão sempre lotadas e há protocolos a

serem seguidos nos casos de óbito. No entanto, naquele dia, um

paciente havia sido transferido para o hospital privado, deixando um

leito vago. Como o Dr. Roger fora colega de profissão, permitiram que

seu corpo permanecesse ali por algumas horas. Enquanto isso, era

realizado um trabalho na Casa em prol do Dr. Roger, com uma pessoa

65

deitada e de olhos fechados o representando no centro de uma

corrente energética.

Exatamente às 15h06, o Dr. Roger levantou da cama e pediu um

copo de água. Não entendeu por que as enfermeiras, em vez de

atendê-lo, saíram correndo. Segundo relatou, naquelas horas em que

foi considerado morto, havia passeado com um monge encapuzado

por amplas e inusitadas dimensões do mundo dos espíritos,

percorrendo tanto paisagens de grande iluminação e beleza quanto

locais de onde emanavam sentimentos de opressão e angústia. Em

todos ele fora acompanhado pela presença segura daquele que

identificou como sendo santo Inácio, que o manteve calmo e relaxado.

O momento mais difícil foi o da volta ao corpo – isso porque a

sensação de leveza e liberdade que experimentara ali era

absolutamente maravilhosa.

O Dr. Roger terminou seu depoimento afirmando que aquela

incrível experiência havia mudado completamente sua vida. Ele

deixara de ser um médico arrogante e se convertera ao espiritismo,

passando a atuar no mundo de forma muito mais humilde e

despretensiosa (MACHADO, 2016, p.135-136).

Roger Queiroz, então médico do Hospital de Base em Brasília, viveu tamanha

experiência inusitada, a qual impactou seu modo de enxergar o mundo; se não tinha

uma ideologia claramente religiosa, passou a ter. Ademais, começou a abandonar a

ideologia materialista da vida, muito comum entre os esculápios. Após tal evento, esse

senhor faz apelo por paz e fraternidade, sentimentos que todos devemos ter com as

religiões diferentes, visto que João de Deus é católico, e ele espírita, ―após o retorno‖

(DEPOIMENTO, 2017, s/p). Este profissional informa da relação de amizade que foi

construída com Dom Inácio em seu passeio pelo ‗inferno e pelo céu‘, da humildade

desse senhor em tratar a si mesmo como ‗nós‘, dele conseguir o consentimento dos

espíritos superiores para reencarnar e, de um ‗puxão de orelha‘ que teve: ―você vai ter

que mudar. Deste ser ganancioso, mesquinho e pretensioso que até hoje existiu, tem

que nascer outro‖ (DEPOIMENTO, 2017, s/p). O médico continua narrando que o

espírito Dom Inácio solicitou que sua mudança fosse constatada por outra pessoa,

não por si mesmo, e que graças ao compromisso de João de Deus com a causa

espiritual, ele estava ali dando o depoimento. Por fim, Dr. Roger conta sobre o acordo

que fez com Dom Inácio sobre algumas ocorrências pessoais, sendo a mais

importante a de se reconciliar com seu irmão de sangue, que há mais de vinte anos

um não podia passar na frente do outro, havendo entre eles ameaça de morte,

inclusive morando ambos na mesma rua.

Depois de muitas lutas íntimas, incertezas, emoções substituídas, lágrimas e

um firme propósito de autotransformação e ‗dever‘ de novas posturas, o acordo se

66

concretizou. O impacto da mudança de sentido na vida do senhor Roger14 foi grande.

―O resultado final foi que ele deixou a profissão de forma intensiva, mudando

completamente seu estilo de vida, medicando, ajudando pessoas necessitadas e

fazendo palestras onde fosse chamado, relatando sua história‖ (GARCIA, 2013, p.72).

Antes cético, adepto a uma ideologia não religiosa, e após seu renascimento,

incorporado por uma nova concepção, senhor Roger evidencia a pujança da religião.

De qualquer forma, assim como outras instituições sociais [família, escola e demais],

a religião possibilita a construção de realidades que os indivíduos almejam, ajudando-

os a manter ou a transformar o social. Segundo Setton (2008), suas categorias de

julgamento [sagrado, profano] e seus padrões morais [obediência, ascetismo] são

dados a partir de códigos de comunicação, a língua, e esta, simbólica por natureza,

sustenta seu próprio universo simbólico-social. Nesse ―processo de transmissão,

negociação e incorporação‖ (SETTON, 2008, p.17), os significados religiosos vão

propiciando [novas] ações práticas, confirmando uma conexão entre experiência-ação

e ideologia-significado.

Aprofundando a compreensão da força religiosa estimulando simbolismos e

comportamentos, Geertz define religião como:

Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,

penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens

através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral

e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as

disposições e motivações parecem singularmente

,

realistas (GEERTZ,

1989, p.67).

É louvável a análise que Geertz realiza em seu livro sobre a definição de

religião, por expor singulares reflexões elogiáveis em cada fragmento. No entanto, não

é oportuno seu detalhamento nesta tese. Todavia, cabe demonstrar a exteriorização

dessa definição no relato do senhor Gerson Marietto, frequentador da Casa de Dom

Inácio:

Tudo começou no dia 3 de novembro de 2017, quando eu estava

desanimado e sem expectativa de vida, pensando em suicídio. Isto

aconteceu dois dias antes do meu aniversário, 5 de novembro. Após

uma discussão com minha mãe, na qual ela disse palavras que

magoaram e pesaram na minha decisão de suicídio, tais como:

aleijado, alcoólatra, sem amor próprio e mal caráter. Essa última foi

14 Perguntado sobre o caso do senhor Roger, João de Deus assevera: ―não é milagre uma pessoa

declarada morta pela medicina convencional, retornar à vida. Embora não seja comum, pode acontecer‖

(apud GARCIA, 2013, p.82).

67

para mim a mais pesada, pois como supervisor de almoxarifado da

Petrobrás – 10 anos de casa, onde pude conhecer o mundo (Dubai,

Egito, Singapura, Europa, Estados Unidos da América e Venezuela),

entre outros países – poderia ser um mau caráter?? Após essa

discussão, com xingamentos e ofensas, decidi tirar minha vida. Para

isto, pensei em ir ao Paraguai, comprar uma arma e eliminar minha

vida. Deitado na cama, rezei para Deus (rezei um pai-nosso e uma

ave-maria) e pedi para ele perdoar todas as minhas ofensas e

pecados. Foi quando uma voz tranquila e passiva sussurrou em meu

ouvido, dizendo para eu ligar a televisão. Como na minha casa eu

costumo deixar o canal Discovery sempre em sintonia, atendi o

chamado da voz (ou de Deus) e liguei como se fosse uma despedida

da vida material. Neste momento, no qual a TV foi ligada, estava

passando um programa chamado ‗Mitos e Verdades‘. Mostrava

pessoas do planeta Terra que acreditam serem milagrosas, entre elas

um monge no Tibet, o qual realizava milagres da cura, através de

orações e ervas medicinais da região. A segunda pessoa foi uma

menina do México, onde ela via a imagem de Nossa Senhora de

Guadalupe, e a santa mostrava como fazer para curar. A terceira

pessoa (essa sim, mudou minha vida e meus pensamentos) era o

senhor João de Deus, em uma cidade que nunca havia escutado:

Abadiânia, Goiás. Foi então que comecei a prestar atenção com mais

rigor e escutar o que o programa dizia (na hora, ou seja, era crucial

escutar o que estava passando no programa). A história de João de

Deus me impressionou, com suas curas e benevolência, milagres e

pessoas curadas, no qual as pessoas davam testemunho (como estou

fazendo agora). Foi então que decidi conhecer pessoalmente a Casa

de Dom Inácio de Loyola, Casa de João de Deus. Logo na minha

primeira vez, fui colocado para fazer uma cirurgia espiritual, para tomar

o remédio da casa, não beber álcool e não comer pimenta. Não vou

comentar a dificuldade que foi para eu chegar em Abadiânia, na

compra da passagem, na estadia da Pousada Nossa Senhora de

Fátima, da dona Célia (minha segunda mãe) e no trajeto para casa de

João de Deus. Isso fica para uma outra história. No segundo mês,

voltando à Casa de Dom Inácio, recebi a benção de largar uma das

muletas. Isso para mim foi um milagre. Estou na Casa há 8 meses,

não possuo mais nenhum sentimento suicida, ando com apenas uma

muleta (mas sem tanta necessidade, pois consigo andar sem ela),

minha urina está controlada (após o acidente de carro não conseguia

controlá-la, e urinava nas calças), minha autoestima está normal.

Graças ao tratamento espiritual que continuo fazendo na Casa de Dom

Inácio, participando da corrente, hoje me considero um homem feliz,

sem problemas aparentemente (apud DIÁRIO DE CAMPO,

25.07.2018).

Por símbolo, Geertz (1989, p.67-68) entende aquilo que ―é usado para

qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a

uma concepção – a concepção é o ‗significado‘ do símbolo‖. Desta forma, tratando-se

dos vínculos a uma concepção religiosa, no relato do senhor Marietto, não

desmerecendo a força emocional – raiva, culpa, tristeza ou outra – envolvida na

68

circunstância, há infindáveis conexões simbólicas no sistema de linguagem expresso.

Logo, ter-se-á como foco de estudo duas palavras-chave: suicídio e João de Deus.

O suicídio foi pensado fortemente após ofensas da mãe, porém, já havia uma

pretensão e predisposição anterior, mas sem o último leitmotiv. Nada indica que o

impulso para a decisão final foi o ocorrido com a mãe e o pensamento de ir ao

Paraguai, visto que fez orações de despedida e súplica de perdão pelos pecados,

originando outros vínculos e significados. Nesse momento extremo de querer se

matar, numa anomia profunda, a religião fez-se presente – pelo chamado da voz

sagrada ‗tranquila e passiva‘ – [r]estabelecendo poderosas disposições para não se

autoexterminar, ou antes, de ligar a TV, sendo ‗crucial escutar o que estava passando

no programa‘ – eis aí o vínculo à disposição para outra ordem de existência geral –

como se estivesse a dizer: ‗a vida não pode se resumir em sofrimento, deve haver

mais para dar sentido‘, isto é, a religião despertando significado existencial maior. Eis

aí um modelo da concepção do significado do símbolo religioso adquirido pelo senhor

Marietto.

Sobre suicídio, Durkheim fez valioso trabalho evidenciando, entre outras

considerações, que a falta de integração social – somada à família desestruturada e

à decidida individualização, pode ser motivo do ‗ato final‘. Desta maneira, ―sendo a

família um preservativo potente contra o suicídio, ela o é tanto melhor quanto mais

fortemente é constituída‖ (DURKHEIM, 2000, p.250). Portanto, a concepção de

religião anteriormente vista, independente da forma, se negativa ou positiva, fez-se

presente na difícil situação.

Um aspecto relevante refere-se ao termo ‗milagreiro‘ aplicado a João de Deus,

como o programa televisivo retrata. Vale ressaltar que a exibição midiática enquadra

o médium numa aura mística, atendendo a própria definição de religião dada por

Geertz, como a dizer: ‗se a ciência não explica João de Deus, então o que esse ser

faz é algo religioso‘. No contexto do programa, João de Deus é apresentado como um

símbolo poderoso de religião e saúde, motivando, pela força dos relatos de cura,

novas formas de se comportar. Desta forma, a partir da saúde, como elemento

definitivo na continuidade da vida, e a doença como geradora de predisposição na

vontade de viver, o senhor Marietto identificou em João de Deus uma possível melhora

física, causando certo impacto diante do quadro desesperador de emoções

desestruturadas, acidente automobilístico, pensamentos suicidas e a realidade

anômica em que vivia; uma espécie de luz no fim da escuridão existencial. Sustenta

69

o senhor Gerson: ―a história de João de Deus me impressionou, com suas curas e

benevolência, milagres e pessoas curadas, das quais as pessoas davam testemunho‖.

Outra fala desse senhor: ‗como estou fazendo agora‘ – compartilhando sua

cura – comprova a importância da simbologia religiosa no restabelecimento da saúde

física e mental, fortalecendo atitudes anteriores a esse resultado: o mérito das

orações, a eficácia de escutar a voz sagrada, a veracidade da reportagem do

programa, a realidade da cura pelo médium que ‗mudou a minha vida e meus

pensamentos‘, a mudança de hábitos, a conquista de novos afetos, o abandonar das

muletas – considerado milagre –, a contenção urinária, a retomada da autoestima, os

retornos à Casa de Dom Inácio e o autorretrato de felicidade. Todo esse sistema

simbólico – pois o resultado prático se internaliza como símbolo – poderoso,

penetrante e durador, estimula a criação de um novo ethos existencial, a agregação

de valores espiritualizados e o abandono de uma vida secularizada.

Concebendo esse sistema de significados

,

religiosos, Geertz estabelece um

paradigma:

Os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo

– o tom, o caráter, e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições

morais e estéticos – e a sua visão de mundo – o quadro que fazem do

que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais

abrangentes sobre ordem (GEERTZ, 1989, p.66-67).

O ser religioso pode participar de uma denominação religiosa sem ter o ethos

desta para si, porém não se despreza uma visão de mundo esperançosa. Quando se

transfere para outra denominação religiosa e realmente ‗se encontra‘, surgem

situações de mudança de vida, de entrega, ‗agora sim estou na casa de Deus‘ ou

‗cheguei em casa, na casa que tanto procurava‘, como sustenta vários FC. É nessa

exteriorização de crenças religiosas que o ethos se mostra pujante na reafirmação

internalizada desse modelo de vida escolhido, retroalimentando-se. Pode-se dizer que

a qualidade de vida de um ser religioso está diretamente proporcional à sintetização

desse ethos. Em outras palavras, sua vida ideal está sendo concretizada porque

acredita, comprova e vive tais signos sagrados. ‗Sua visão de mundo está correta‘

pois emocionalmente sente-se convencido. Como consequência, invocam-se

―sentimentos morais e estéticos sentidos profundamente como provas experimentais

da sua verdade‖ (GEERTZ, 1989, p.67). A exposição da FC1, vista anteriormente,

representa esse ethos [existencial e moral] e sua visão de mundo:

70

Depois da cirurgia espiritual [com João de Deus], sem dores, minha

vida ficou diferente, tudo parecia novo para mim. A Entidade me

orientou a estudar a doutrina espírita. Fui disciplinada e educada pelo

trabalho na corrente da Casa [de Dom Inácio] e pela oração. Por

muitos anos estive orientada pelo médium João e as Entidades. [...]

Tive a oportunidade de ser mãe mais três vezes e também adotamos

mais uma criança. Realizei muitos trabalhos voluntários levando

conforto aos doentes na forma de passe energético e a palavra de

Deus (FC1).

O conteúdo manifesto do relato aponta, após a intervenção espiritual, um

ethos repleto de novas perspectivas e condutas, ‗tudo parecia novo‘, assevera a FC1.

Uma nova pessoa, um ‗eu‘ mudado. Possivelmente, a manifestação de um sentido

maior sem explicação imediata impulsionava para uma nova visão não só de mundo,

mas de universo, ou seja, a ordem de existência geral apontada por Geertz

anteriormente. ‗A Entidade me orientou a estudar a doutrina espírita‘. Depreende-se a

partir dessa fala o quanto a vivência de experiências espíritas possibilitou uma nova

identidade religiosa. Uma busca por inéditas posturas de vida. Por conseguinte, as

preferências morais se clarificaram: trabalhos voluntários aos doentes, adoção de uma

criança, formação profissional, estudo. Isto tudo não apenas mobilizou atitudes

solidárias ao próximo, mas a si mesma, tendo posicionamentos de responsabilidade

particular e coletiva.

A autoridade da visão de mundo alimenta o ethos que se torna real e este faz

o mesmo àquela. É relevante mencionar que João de Deus se diz católico, todavia,

quem orientou o estudo espírita foi a Entidade. Pode-se dizer que a visão de mundo

espírita é mediata, pois, segundo Allan Kardec, são necessárias várias reencarnações

para compreender as leis naturais [para o espiritismo, não necessariamente somente

as leis físicas descobertas pelos humanos até hoje, mas as leis de Deus, consideradas

eternas, contendo igualmente as leis morais]. As leis divinas contemplam as leis

físicas – sobre a matéria bruta – e as morais; estas abrangendo as regras do corpo e

da vida da alma (KARDEC, 1998). O ‗vivi intensamente‘ dito pela FC1 provavelmente

remeta ao entendimento dessas leis naturais-morais.

Como se evidencia, a interiorização dos símbolos religiosos possibilita a

construção de novos comportamentos que se retroalimentam na cultura como um

todo. Desta forma, Berger e Luckmann (2013), Setton (2008) e Geertz (1989) são

unânimes no entendimento de que a religião é construtora de símbolos pujantes. Cada

71

um a seu modo observa a variabilidade de produtos simbólicos e de imagens materiais

ou imateriais dos significados compartilhados na vida religiosa.

Diante dessa visão sobre cultura e força religiosa, é relevante retornar aos

termos exteriorização, objetivação e interiorização de Berger (1985) e Berger e

Luckmann (2013) no intuito de questionar sobre a simbologia e a linguagem. Seriam

estes somente efeitos da interiorização ou pode-se dizer que são, de certo modo,

‗produto dialético‘ das três categorias? Assim, tendo em vista as definições de

exteriorização e interiorização, observadas anteriormente, seus aspectos serão

adentrados. A objetivação foi observada no início deste capítulo, ao campo e aos

sujeitos desse estudo, ou seja, à Casa de Dom Inácio de Loyola e aos[às] Filhos[as]

da Casa.

Como se trata de uma interação dinâmica entre exteriorização, objetivação e

interiorização, faz-se mister uma melhor concepção do papel simbólico – por ser este

fruto dialético daqueles – não só na socialização como um todo, mas na visão de

mundo religiosa em particular.

1.4 Os símbolos e suas construções

É importante contextualizar o ressurgir das pesquisas sobre simbologia no

começo do século XX, um início atípico. Pairavam no ar múltiplas imagens:

psicanálise, fim da Primeira Guerra Mundial e suas consequências, Surrealismo,

superação do cientificismo comteano, crítica à racionalidade, fim do eurocentrismo

[contundente constelação de imagens], censura à metafísica, fortalecimento da

etnologia, utopia do comunismo e outras concepções que fortaleciam e ou

enfraqueciam as sociedades.

Nesse cenário histórico, muitas pesquisas voltaram-se para imagem,

imaginário, símbolo e simbolismo, principalmente devido aos resultados da

psicanálise. Para Eliade (1991), a psicanálise trouxe o mérito de averiguar o

inconsciente e suas manifestações simbólicas em ações, palavras e produções

mentais. A investigação do mundo imaginário suscitou desconfiança caso a

mentalidade primitiva utilizasse somente esse conhecimento na vida social15. Não

15 Muito desse preconceito adveio de James Frazer, antropólogo escocês, que morreu em 1941,

seguidor da ‗Lei dos três estados‘ de Comte. Para esse estudioso, as religiões arcaicas, juntamente

com seus mitos e ritos, ―não passavam de um monstruoso acúmulo de insanidades, crueldades e

superstições felizmente abolidas pelo progresso racional do homem, de tanto ouvir quase sempre a

mesma coisa, o público acabou por convencer-se disso [...]‖ (ELIADE, 1991, p.24).

72

tardou para se verificar que a suspeita tinha fundamento. Superada a prenoção, o

símbolo começou a ser entendido ―como modo autônomo de conhecimento‖ ou

―instrumento do conhecimento‖ (ELIADE, 1991, p.05), sendo as imagens necessárias

para a compreensão do mundo.

Sobre a definição de imaginário, Ruiz (2015) aponta ser impossível sua

exatidão, devido ao fato de sempre desaperceber algum aspecto ao limite explicativo.

No entanto, ao dedicar-se à significação precisa, o autor ressalta que antes de possuir

pensamentos, os bebês sonham imagens e assim constroem um mundo que lhes dê

sentido. ―Por meio das imagens significativas do mundo, vamos tecendo nossa

identidade: somos a imagem do mundo, que de modo criativo refletimos em nossa

interioridade e projetamos em nossa práxis‖ (RUIZ, 2015, p.23). Uma identidade,

como se sabe, não consegue viver em oposições imagéticas sem respostas cabíveis,

fazendo-se necessária certa ordem.

Não obstante, para Ruiz, imaginário e imaginação não se confundem.

O imaginário corresponde ao aspecto insondável do ser humano, em

que se produz, além de todos os condicionamentos psíquicos e

sociais, o elemento criativo; ele constitui o sem-fundo inescrutável da

pessoa humana, que possibilita a imaginação e também a

racionalidade

,

como dimensões próprias do humano. A imaginação e

a racionalidade são criações do imaginário, e ambas coexistem

necessariamente, correferidas na dimensão simbólica inerente ao ser

humano (RUIZ, 2015, p.25, grifo do autor).

Diante dessa reconciliação entre imaginação e racionalidade,

restabeleceram-se a validade e a coerência intrínsecas no pensamento arcaico. No

mito indígena ―Itaja, o espírito da pedra‖ (SILVA, 2003, p.10), um menino quebrava

pedras para matar passarinhos. Com o passar do tempo, ele adoeceu. O pajé curou

o garoto e o fez entender que o espírito da pedra tinha se irritado, por isso ele havia

adoecido. O menino poderia ir embora, mas não faria mais isso16. Essa estória, de

cunho pedagógico, possibilita imagens lógicas entre traquinagem, doença e postura

moral, instituindo tradição. Independente se a pedra tem espírito ou não – à

semelhança do pensamento mágico – as crianças aprendem a generalizar imagens

do respeito às coisas inanimadas, naturais.

15 Há semelhança com Jesus dizendo aos sofredores: ―vai-te, e não peques mais‖ (João 8, 11).

https://www.bibliaonline.com.br/acf/jo/8/11

73

Inata à sociedade à qual o indivíduo está inserido, a coerência das imagens

constitui blocos de realidade, fornecendo uma espécie de ‗cola‘ das percepções

isoladas que, no conjunto, engendram imagens verdadeiras dos fenômenos. Assim

aconteceu aos mitos indígenas, gregos, egípcios, romanos ou outros e, na

contemporaneidade, não é diferente.

Quando se substitui uma imagem por outra ou o mito do paraíso celeste pelo

mito da ilha paradisíaca, não se destrói a gravura anterior, apenas as novas imagens

ganham maior valor para quem imagina; isto dá à imagem uma característica

multivalente. Pode-se dizer que a imaginação dos mitos ao longo da história humana,

originados dos primeiros hom*o sapiens, formou novas imagens na constituição das

realidades, prosseguindo, reformulando até erigir as concepções contemporâneas.

Logo, as imagens são indestrutíveis. Para Eliade (1991), a sobrevivência indelével

dos mitos comprova que ―o símbolo, o mito, a imagem, pertencem à substância da

vida espiritual, que podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais

poderemos extirpá-los‖ (ELIADE, 1991, p.07).

Eliade (1991) é peremptório nesse ponto, ou seja, o pensamento simbólico,

anterior à razão, desvenda aspectos da realidade e do conhecimento. ―As imagens,

os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psique; eles respondem a

uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades

do ser‖ (ELIADE, 1991, p.08). Dentre essas modalidades, emergem o inconsciente e

os arquétipos. O inconsciente não é apenas uma dispensa de monstros sexuais

reprimidos que os impulsos instintivos alimentam, mas também um lar de deuses e

heróis. Ele cria arquétipos polivalentes: o paraíso perdido; a ‗imagem da mãe‘ que dá

nascimento à ‗mulher perfeita‘ e a haréns celestiais; a ‗origem das coisas‘; a ‗nostalgia

da unidade primordial‘; a ‗realidade última e verdadeira‘; a ‗bondade plena‘; ‗quedas

irreversíveis‘ e muitos outros derivados. Além das dissensões que tais imagens podem

causar, vive-se e morre-se por elas.

À vista disso, não é difícil concluir que o imaginário equipa a mente humana

com estruturas ‗substanciais‘, produzindo símbolos mutantes em suas aparências,

mas alimentados por fontes perenes. Logo, à miríade de mitos existentes no passado

e no presente comprova-se tal ideia. Deste modo, o humano que acredita ser o mais

racional possível, coroado de títulos científicos, sabedor de conhecimentos eruditos,

testados nos mais excelentes laboratórios, adepto de protocolos imaculados e outros

status, desconhece a força das imagens. Para Eliade (1991), ―a mais pálida das

74

existências está repleta de símbolos, o homem mais ‗realista‘ vive de imagens‖

(ELIADE, 1991, p.11-12, grifo do autor). Para os que não enxergam, deve-se levantar

as máscaras ou tirar os antolhos.

Sobre a potência imagística na religião, as pesquisas feitas pela antropóloga

e linguista Felicitas G. Goodman testemunham que o ritual religioso é uma espécie

robusta de comunicação; talvez a comunicação mais exaltada (GOODMAN apud

GREENFIELD, 1999). ―No seu desenrolar, a informação sobre a outra realidade, com

suas forças misteriosas e seres poderosos, é transmitida aos participantes‖

(GREENFIELD, 1999, p.135). Além dos padrões de pensamento, o ritual – repleto de

imagens – modifica o ser. Para quem está iniciando um rito de passagem,

Tanto ensina aos neófitos como pensar com algum grau de abstração

sobre o seu ambiente cultural [e as forças existentes nele], como

também lhes fornece os padrões definitivos de referência. Ao mesmo

tempo, mudam-lhes a natureza, convertendo-os em outros tipos de

seres humanos (TURNER apud GREENFIELD, 1999, p.135).

Por conseguinte, encontra-se equivocado quem afirma haver necessidade da

linguagem verbal ou conceitual. Göran Aijmer certifica que na interação das pessoas,

estas se servem de imagens e, às vezes, devido as suas fortes imagens, elas não são

captáveis em termos linguísticos. Para Aijmer, ―as imagens se fazem conhecer a si

mesmas através das instituições culturais, não através do pensamento reflexivo. A

imagística, especialmente na forma de ícones estáveis, estrutura e sustenta o discurso

oficial‖ (apud GREENFIELD, 1999, p.135-136). Esse fluxo simbólico não

necessariamente tem fundamento cognitivo, mas intuitivo. Não está na memória ao

nível da resposta do ‗que dia foi ontem?‘. ―Ele parece operar mentalmente mais como

gravuras visuais do que como formulações verbais e sua semântica depende da

presença simultânea de elementos que são em si mesmo imagens‖ (AIJMER apud

GREENFIELD, 1999, p.136). Dessa maneira, a imagística religiosa fornece uma

espécie de competência social introduzindo valores morais de integridade, ordem,

sacralidade, outros e, por fim, a divindade.

O antropólogo Greenfield denominou esse ‗local imagístico‘ de ‗realidade

alternativa de cultura‘, sendo capaz de fazer registros imperceptíveis, em que a

consciência é dispensável, prevalecendo a ordem sugestionada. Para tal autor, ao

contemplar a cura espiritual, o doente emite sinais em resposta ao ritual religioso,

75

adentrando na realidade alternativa de cultura, propícia em estados alterados de

consciência, hipnose e sono, sob efeitos anestésicos. Dessa forma,

Os conhecimentos embutidos na sua compreensão das coisas

sagradas, muitas vezes em forma de imagens que incluem a causa

eficiente da doença e da sua cura, sejam comunicados como

informação, isto é, decodificada da cultura através da mente ou da

psique do indivíduo para o sistema nervoso autônomo, o sistema

endocrinológico, o sistema imunológico, etc. (GREENFIELD, 1999,

p.137).

Assim sendo, segundo Greenfield (1999), as intervenções espirituais e físicas

realizadas por médiuns como João de Deus, as quais possuem pouco sangramento,

são indolores, não apresentam infecções e têm rápida recuperação pós-intervenção;

elas ocorrem ‗dentro‘ da realidade alternativa de cultura, em que os rituais transmitem

sinais comunicados e captados, normalmente, em forma de imagens, bem como por

meio de expressões verbais.

No entanto, sabendo da influência da imaginação no organismo, ainda restam

dúvidas sobre essa realidade alternativa de cultura diante da comunicação

apresentada pela FC8:

[...] então a ciência tem uma explicação, só que assim, essa coisa do

kardecismo que eu tinha de tipo: ‗tá, mas e?‘ Isso eu parei, parei de

fazer porque aconteceram comigo coisas que assim não têm

explicação. As curas que aconteceram, as situações que eu passei...

Eu penso assim, que hoje a gente pensa com coração, não pensa mais

com a mente. O que eu entendo assim: o amor não é explicável, não

tem como explicar amor, não tem como explicar esse sentimento,

sabe? E eu te

,

digo, eu era muito chata, eu incomodei muito aqui [na

Casa. Risos], incomodei muito; eu era muito questionadora na

corrente. E depois, chegou em um ponto que meu pai [médico no sul

do país]... eu e meu pai. Lembro que a gente estava lá na frente

olhando as cirurgias e aí meu pai falou para mim, no meu ouvido: ‗e

esse aí, ele corta o povo lá dentro, depois ele vem aqui e diz que isso

acontece espontaneamente‘. Aí a Entidade chegou na frente do meu

pai e disse assim: ‗vocês dois, hoje à tarde quero vocês na sala de

cirurgia de pé com os olhos abertos‘ [risos], e aí ele pegou aquele porta

agulha dele que tem algodão e botou na água e enfiou na minha boca

e disse: ‗o que é isso minha filha?‘; ‗É água‘, ai ele pegou de novo e

fez assim [na boca] e disse: ‗e agora?‘; e eu não conseguia falar

porque eu fiquei toda anestesiada na boca Aí à tarde, a gente veio

para sala de cirurgia, a gente ficou de olhos abertos e ele pegou me

chamou, levou pessoas, na época ele escolhia voluntariamente,

aleatoriamente, você e você e você, levou 9 pessoas e botou contra

uma parede e aí ele pegou uma agulhinha enfiou na mão de uma

senhora e atrás dela e levantou, estava sangrando aqui na coluna e

ele levantou a blusa de cada pessoa, cada um tinha um corte em um

lugar. ...E ele disse: ‗vocês viram eu cortar alguém lá dentro?‘ Claro

76

que não, não tinha, ninguém mexeu em ninguém e daí ele disse: ‗pois

é‘, daí ele chamou meu pai mostrou umas cirurgias lá, aquelas que

fazem no nariz, aí ele ainda martelou, botou no ouvido e martelou, ele

disse para meu pai: ‗se você fizer isso em seu paciente o que

acontece?‘; ele disse: ‗eu mato ele‘ [risos]. ‗Pois é filho, porque aqui

não é na matéria que faz isso‘. E assim, ele foi nos mostrando com

muita paciência... Eu lembro que um dia também meu pai estava ali,

ele me chamou, chamou a mim e meu pai também, pegou e cortou

uma pessoa, uma senhora que estava contra a parede, cortou ela e

saiu caminhando e me deu uma agulha e disse: ‗agora você costura‘.

Aí eu pensei: ‗Costurar?‘ Peguei o troço lá e o troço não... e eu não

conseguia enfiar aquela agulha e não conseguia e não conseguia e

aquele troço começou a sangrar. E aí do lado tinha um senhor que se

chamava Tiãozinho e ele disse para mim: ―Costura de uma vez‖ e meu

pai ali olhando e eu falei: ‗eu não consigo, o troço parece que virou

uma pedra‘ [risos] e a Entidade voltou e veio assim em mim e disse:

‗Então, não conseguiu?‘ Eu falei: ‗não‘, ele disse assim: ‗você é filha

de médico ou não é?‘ [risos]. Eu falei: ‗meu pai é médico, eu não sou‘.

Ele falou: ‗você não tem fé, você não tem fé‘, aí ele chamou minha

amiga, ela é enfermeira e disse: ‗filha, costura‘. Ela foi lá e tec tec tec,

costurou; ela tinha muita fé! Aí [risos], aí ele ficou me olhando tipo

assim, com uma cara de... [risos]. Aí meu pai já ficou meio invocado:

‗o quê que é isso? Uma coisa dessas?‘. Mas assim foi, a gente tem

muita, muita... a gente enfrentou muita coisa, foram muitas situações

assim. O que eu te falei são fenômenos físicos, mas o mais importante

que acontece eu acho, é o que acontece dentro da gente quando faz

uma cirurgia (FC8; grifos de ênfase).

Ainda nesse contexto, poder-se-ia abordar e contemplar muitas imagens

evocadas pelo FC8. No entanto, as que ficaram registradas com mais veemência

foram: o médium captou o que o pai e a filha cochicharam como rejeição e depois

solicitou que os dois comparecessem no período da tarde para testemunharem o

contrário, ou seja, apenas uma pessoa com agulha introjetada, porém, nove

sangrando. No momento da manhã, o médium introduziu um chumaço de algodão

embebido em água fluidificada e a moça ficou com a boca adormecida, não

conseguindo falar. Sabe-se que os simbolismos religiosos são imagens na mente

humana, possibilitando a criação da noosfera17, porém nem mesmo a ‗realidade

alternativa de cultura‘ parece responder aos ocorridos, que não se passaram apenas

na mente imagética, mas na realidade empírica. Doença, cura espiritual, ações físicas

17 Originada do grego nous – pensamento – e do latim sphaera – esfera ambiental – a noosfera foi

engendrada a partir da capacidade de pensar e raciocinar do hom*o sapiens. Para Teilhard de Chardin,

―o que se refere à noosfera é a ‗camada‘ pensante a envolver a Terra, formando um ‗reino‘ distinto da

biosfera – camada viva não pensante – embora sustentado por esta‖ (SANTOS, 2011, p.11, grifos do

autor).

77

e instrumentos cirúrgicos ainda continuam a desafiar a mente dos pesquisadores na

Casa, seja imageticamente ou por outro meio.

Contudo, por ser inescapável à vivência simbólica, é notório que cada era

constitui o acúmulo das imagens do passado em tensão com as imagens do presente,

o que leva o humano a ser condicionado – porém, não determinado – num contexto

histórico. Todavia, mesmo havendo uma hegemonia de imagens situadas no centro

da sociedade, como alerta Eliade (1991), não se deixa de haver imagens periféricas

a circular o núcleo.

Sendo assim, há ‗modas de pensamento‘ que favorecem ou prejudicam a

compreensão do objeto estudado. Por exemplo, dependendo do momento histórico, a

suposição do que sejam os objetos doença-cura podem levar a imagens positivas ou

negativas desse binômio. Como tais objetos passam a ser fenômenos, isto é, modos

de se revelarem e manifestarem-se a nós, eles ―são cunhados como uma medalha

pelo momento histórico que os viu nascer‖ (ELIADE, 1991, p.27), sem, contudo,

responderem por completo. O que leva a concluir que o tempo e a história humana

moldam a imaginação do objeto, não havendo objeto ‗puro‘ ou conhecimento imutável

e último; por consequência, aparentemente, tendo a realidade alternativa de cultura

respondido por completo.

A contextualização histórica da simbologia da cultura ocorre sobretudo devido

à linguagem exteriorizada e interiorizada nas relações. Como visto anteriormente,

Berger e Luckmann (2013) frisam ser a linguagem o elemento fundamental na criação

de esquemas interpretativos. E, como é possível deduzir, tais esquemas

interpretativos podem ser reflexo da imperfeição da linguagem, segundo Eliade

(1991).

Diferente de outras instituições humanas, a religião exterioriza aspectos

sagrados vinculados a algo ou a um ser maior – considerado transcendente e

causador do princípio absoluto – este ser é Deus, para as religiões cristãs, porém,

outras religiões monoteístas o denominam de forma distinta, dando-lhe novas

imagens, sentidos e características. Essa crença e credos derivados exteriorizam

símbolos potentes, os quais serão analisados.

78

1.4.1 Vigoroso simbolismo religioso

Eliade (2008), em suas investigações, alerta para o fato de estudar a religião

‗por dentro dela‘, isto é, de se ater ao que os fatos religiosos presenciados revelam e

ao que é possível interpretar dos mesmos. Assim, quando não se é secularista em

demasia, nem religioso em excesso, pode-se apreender sua característica sagrada.

Por outro lado, todo e qualquer fenômeno religioso está imbuído de aspectos das

diferentes áreas humanas [psicologia, economia, arte e outras] sendo impossível

separá-los entre si e da interpretação humana carregada de simbologias.

Da mesma maneira, um fenômeno religioso somente se revelará como

tal com a condição de ser apreendido dentro da sua própria

modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar

este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela

ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc é traí-lo, é deixar

escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de irredutível,

ou seja, o seu caráter sagrado. É verdade não existirem fenômenos

religiosos ‗puros‘, assim como não há fenômeno único e

exclusivamente religioso. Sendo a religião uma coisa humana, é

também, de fato, uma coisa social, linguística e econômica – pois não

podemos conceber o homem para além da linguagem e da vida

coletiva.

,

Mas seria em vão querer explicar a religião por uma dessas

funções fundamentais que definem o homem, em última análise

(ELIADE, 2008, p.XVIII, grifo do autor).

Mesmo circunscrita ao mundo humano, a religião apresenta elementos que

fogem ao lado especificamente do homem, ou melhor, apresenta aspectos sagrados,

separando a pessoa destes. A própria etimologia da palavra sagrado remete o

indivíduo ao externo: ―sagrado é derivado do adjetivo latim sacer, ‗separado‘ ou

dedicado ao uso religioso, especialmente a Deus, santo‖ (CHAMBERS apud

VAILATTI, 2016, p.21). Dessa maneira, geralmente, sagrado é oposto ao profano. Ao

sagrado pertencem os seres divinos, objetos, atos humanos e símbolos que, por

convenção, são aí colocados, dependendo do grupo social em contexto. Para Foley,

―o hom*o religiosus é hom*o symbolicus – a pessoa religiosa é uma pessoa que usa,

possui e opera o símbolo‖ (FOLEY apud VAILATTI, 2016, p.22). Logo, vivendo numa

teia de símbolos sagrados, o humano religioso pode venerar:

altares, santuários, comidas, perfumes, lugares, capelas, templos,

amuletos, colares, livros. E também gestos, como os silêncios, os

olhares, rezas, encantações, renúncias, canções, poemas, romarias,

procissões, peregrinações, exorcismos, milagres, celebrações, festas,

adorações. E teríamos de nos perguntar agora acerca das

propriedades especiais destas coisas e gestos, que fazem deles

79

habitantes do mundo sagrado, enquanto outras coisas e outros gestos,

sem aura ou poder, continuam a morar no mundo profano (ALVES,

1986, p.22-23).

Essa ‗propriedade especial‘ que inquire Alves (1986) pode ser justamente o

que Ruiz (2015) assevera do símbolo como um todo, mas que aqui é apresentado ao

símbolo religioso em particular. Para Ruiz (2015), o ―símbolo infunde anima ao mundo.

Sem o simbolismo, o mundo seria um corpo des-animado, sujeito a meras

dissecações analíticas e a objetivações lógicas, supondo que pudessem existir ambas

as dimensões de modo independente‖18 (RUIZ, 2015, p.107, grifo do autor). Nesse

contexto, com intenção de ratificar essa ‗força‘, como visto anteriormente, o

antropólogo Geertz (1989) menciona que a religião fornece símbolos que despertam

poderosas disposições mentais e motivações de vida e ordem universal.

É importante destacar que Ruiz (2015) contempla anima e Geertz (1989),

poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações. Poderiam os dois

autores estarem usando palavras diferentes para o mesmo fenômeno, isto é, ambos

almejariam verbalizar a força da simbologia religiosa? Aparentemente sim. No

entanto, Ruiz (2015) aprofunda e fornece ‗o como‘ essa força simbólica acontece.

Para ele, o símbolo é a ponte entre o eu e o mundo material; o símbolo liga e ‗re-liga‘

o eu ao outro.

O eu e o mundo se ligam, interpenetrando-se vitalmente, isto é,

religando-se. Pessoa e mundo se religam numa conexão real

[simbólica], que constrói pontes de vitalidade significativa entre ambos

os lados. O sentido realiza uma recriação do mundo; nele as coisas

adquirem uma função, um valor, um techne, que as insere num outro

estágio compreensivo (RUIZ, 2015, p.108, grifo do autor).

Ao demonstrar uma hipótese bastante razoável, Ruiz (2015) declara que a

força do símbolo se ‗esconde‘ na representação que um sujeito possui daquilo que o

grupo social diz ser realidade. A ‗coisa‘ que a representação evoca traz em si mesma

sua realidade, uma realidade irredutível para quem ‗representa‘ e para todos que

18 Faz-se menção à teoria dos ídolos de Francis Bacon, para quem os ‗símbolos animados‘ ou ídolos

mentais são muitas vezes causas de erros e preconceitos. Para ele, havia quatro tipos de ídolos aos

quais se pode apegar: ídolos da tribo [generalização apressada dos sentidos: ‗quem enxerga espíritos

sofre de disfunção mental‘]; ídolos da caverna [baseia-se na experiência pessoal: ‗Só leio texto

filosófico, sei do que falo‘]; ídolos do foro, ou mercado [entendimento fechado do senso comum: ‗sinto

que estou certo, se a ciência diz o contrário, nada tenho a ver com isso] e; ídolos do teatro [aceitação

de dogmas e métodos inadequados: ‗todo câncer em estágio IV não tem cura‘]. Tais ídolos são

símbolos de apreensão cognitiva repletos de ânimos e certezas. Para maiores informações, consultar

a obra Novum organum, de Francis Bacon.

80

concordam com ela. A coisa representada é o próprio ser da coisa19. ―As

representações não são algo diferente do ser; elas são as formas, diversas e plurais

em que o ser se manifesta. É o caráter realizativo do real. O modo como algo se

apresenta a si mesmo forma parte de seu próprio ser” (RUIZ, 2015, p.112, grifos do

autor).

Por se tratar de seres sagrados, os religiosos elaboram representações que,

através da socialização, infundem anima ou vigorosas disposições naqueles

socialmente influenciáveis20. O ‗grau de anima ou disposição‘ que cada um traz

consigo também é – mas não completamente – reflexo da socialização recebida. A

maioria das famosas figuras impressionantes da religião cristã assim demonstram:

Francisco de Assis, Joanna d‘Arc, Madre Teresa de Calcutá; no Brasil,

especificadamente, Frei Damião, Chico Xavier; em Goiás, Padre Pelágio, João de

Deus e muitos outros. Estes e outros ‗exemplos fortes‘ atravessam décadas ou

centenas de anos. Ao volver os olhos ao percurso histórico da humanidade, verifica-

se que tais disposições religiosas não perpassaram por milênios de forma aleatória

ou indiscriminadamente.

Dessa forma, se a religião está imbuída dos aspectos das várias áreas

humanas, se nela há concepções consideradas sagradas, se possui propriedades

especiais fornecidas pelos símbolos – infundindo anima ao mundo – e se a força do

símbolo a faz tornar real, representando o que ela pode ser; tais qualidades não

seriam possíveis sem a linguagem. Parafraseando Eliade, não que não existam

fenômenos única e exclusivamente linguísticos; sem a linguagem todo esse mundo

de sentidos poderia ser menor e carente. Sendo assim, qual a real importância da

linguagem?

19 A ideia de que o ‗símbolo é a coisa‘ ou de que conhecendo sua construção é possível desconstruir,

pode ser a chave para se libertar de muitas violências individuais ou sociais, originadas de

representações ou ‗palavras mal-ditas‘ em contextos diversos, com maior destaque para o âmbito

religioso. Como exemplo, a erupção da perseguição aos terreiros de umbanda e candomblé,

principalmente na Bahia e no Rio de Janeiro em 2017 são reflexos de intolerância religiosa por parte

de grupos neopentecostais (VIOLÊNCIA, 2017, p.08).

20 Compara-se algumas diferentes crenças religiosas entre si, desde crenças simples sobre o sagrado

até situações que raiam o insensato. Contudo, insensato para o observador, como, por exemplo, em

uma ilha da Indonésia, Celebes, os nativos jogam fora os frutos azarentos pois são prenuncio de morte

na família, ou de que a pessoa devia estar nua ao semear a terra na Finlândia (ELIADE, 2008).

81

1.5 A linguagem construindo verdades e realidades

Ao buscar o significado de linguagem em Wittgenstein – no chamado segundo

Wittgenstein – faz-se uso da dedução, pois o autor, citando Santo Agostinho – teórico

referencialista da linguagem – e abordando uma espécie de essência da linguagem,

indica o tipo comum de compreensão desta para depois criticá-la:

[...] as palavras da linguagem denominam objetos – frases são

ligações de tais denominações. Nesta imagem da linguagem

encontramos as raízes da ideia: cada palavra tem uma significação.

Esta significação é agregada à palavra. É o objeto que a palavra

substitui (WITTGENSTEIN, 1999, §1).

Para o filósofo e linguista Wittgenstein, é impossível se ater à linguagem

somente como expressão dos objetos existentes, visto que para muitas palavras não

há objetos, como normalmente mostram as linguagens religiosa, ética e a estética.

Por não ser possível praticar regras

,

universais de sintaxe, as proposições expressas

nas comunicações obedecem a acordos tácitos com suas simbologias quase unívocas

em contextos específicos, os quais o filósofo denominou jogos de linguagem.

Analogamente, jogo de linguagem emerge como uma condição familiar entre signos

e significados aparentados.

Diante disso, questiona-se qual seria a relação existente entre signo e

significado ou entre nome e denominado, segundo Wittgenstein? Há inúmeras

possíveis; ―[...] essa relação pode, entre muitas outras coisas, também consistir no

fato de que o ouvir um nome evoca-nos a imagem do denominado perante a alma [...]‖

(WITTGENSTEIN, 1999, §37), porém, a imagem do denominado em nada garante a

significação semelhante, mas várias possibilidades.

Para uma comunicação mais profícua, é importante ―não apenas um acordo

sobre as definições, mas [por estranho que pareça] um acordo sobre os juízos‖

(WITTGENSTEIN, 1999, §242). Esses acordos entre as proposições afastam

possíveis distorções na comunicação simbólica do ser humano. Eis um exemplo da

importância do acordo entre juízos, dito por um palestrante na Casa de Dom Inácio:

―Aqui é um pedacinho do céu na Terra, uma Casa de amor. Aqui tudo é energia,

energia que cura, que equilibra‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 11.01.2018). Cada palavra,

separadamente, é compreensível, porém, ao aglutiná-las nesse juízo, esperando

compreensão, podem ocorrer distorções, não só devido à falta de definição de

conceitos, mas porque os juízos podem não estar de acordo com o discernimento do

82

‗interlocutor‘. Daí a importância em saber o contexto do discurso, como bem salientou

Meurer e Dellagnelo (2008), ou seja, nesse caso, a Casa de Dom Inácio.

Assim sendo, viver em sociedade é viver se comunicando e expressando-se

por meio da linguagem, mas não a linguagem dos animais, pois estes, para Ruiz

(2015), possuem uma linguagem funcional, enquanto o humano tem uma simbólica.

A linguagem funcional indica signos instintivamente definidos na adaptação ao meio

ambiente e na busca pelas satisfações vitais. Desta forma, os animais se comunicam

para alimentar, reproduzir, fugir, defender-se e outros; não há criação de imagens nem

fecundações simbólicas. O animal vive a realidade imediata. Ele ―não tem

possibilidade de representar a realidade, como algo diferente de si. As coisas são

sempre apresentadas, nunca representadas‖ (RUIZ, 2015, p.132, grifo do autor).

Representar significa mostrar algo como ‗reflexo/significado‘ de outro: um som

que indica uma música ou um ser; uma palavra que evoca uma imagem ou um som,

o qual é um símbolo que faz surgir uma imagem e esta, por sua vez, é igualmente um

símbolo na mente. Assim, viver a linguagem simbólica significa representar em

sociedade humana. Para Ruiz (2015),

A representação produz o simbólico, uma característica

intrinsecamente humana. Esta disposição representativa provocou a

ruptura do instinto animal para a autoconsciência humana. Na imagem

significativa encontra-se a singularidade humana, pois para o ser

humano, a linguagem é a casa do ser [Heidegger] (RUIZ, 2015, p.132,

grifo do autor).

Para compartilhar concepções em sociedade, o humano precisa da linguagem

assim como a ave necessita das asas. Como exemplo histórico das ciências sociais,

as meninas-lobo Amala e Kamala, encontradas em uma floresta da Índia, não

possuíam linguagem humana; viviam e reagiam como animais, expressando uma

condição aquém do mínimo para a convivência humana. O que leva a inferir que elas

não eram humanas; possivelmente tinham potencialidades para, mas não eram

devido à ausência da linguagem simbólica. Se a linguagem é o lar humano, como

indica Heidegger, elas moravam fora da casa.

Segundo Ruiz (2105), a cultura é a solidificação da linguagem que nos faz

voltar a si mesmos para recodificar a linguagem em novos sentidos. ―Na hora de nos

expressar, a linguagem adquire uma conotação pública que a transforma em

significação sócio-histórica, a qual passamos a denominar de língua particular de uma

sociedade‖ (RUIZ, 2015, p.133). Na coletividade, a língua expressa ou representa a

83

realidade, formando uma teia de significados e sentidos para o grupo social que a

produz. Assim, como aponta esse autor, a linguagem possui duas características:

criatura e criadora do social. Como criatura, recebe da cultura um amontoado de

sentidos prontos e acabados; como criadora, sua singularidade adquire

independência para produzir possibilidades de novas comunicações e interações.

Para as pessoas que não frequentam a Casa de Dom Inácio ou lugares que

utilizem linguagem semelhante, quiçá este tipo de fala a seguir possa parecer

estranha ou incompreensível, porém possui sentidos e significados espirituais àqueles

que estudam suas causas e seus efeitos:

Talvez nem apareça mais ou, às vezes, tu nem tem que passar por

uma doença, mas tu passa, porque tu saiu fora do teu caminho. E é

isso que eu digo, eles [os espíritos, as Entidades] sabem disso, eles

conhecem o nosso passado. Eu sempre falo para o pessoal na

corrente: ‗as Entidades daqui, os médicos, os enfermeiros, todos os

professores do espaço, eles conhecem o nosso passado, conhecem

o nosso presente, conhecem o nosso futuro, as possibilidades que a

gente tem no nosso futuro‘. Eles têm todo um acesso nosso para

achar, a caixa que a gente fala, então assim... A caixa que a gente fala

é aonde ficam todos os registros, uma espécie de caixa preta do

espaço. Então fica tudo lá registrado. Então eles têm acesso a isso,

por isso que eu entendo também quando ela [a Entidade incorporada

em João de Deus] fala assim: ‗eu vou olhar, eu vou ver‘, eu sempre

digo para o pessoal, eles têm uma reunião entre eles lá em cima, com

as altas hierarquias. E vão ver quais são as condições que a gente

tem de ficar melhor, se existe uma possibilidade para a gente. Por isso

que às vezes ele fala: ‗volta de tarde, eu vou ver‘. Às vezes eles

precisam desse tempo, é que nem o médico: ‗não, eu preciso de tais

exames para tirar uma conclusão maior‘. E eu entendo assim, aqui é

uma imagem muito pobre do plano espiritual, aqui a nossa parte física.

Então lá, imagina assim, os caras têm toda uma hierarquia, têm toda

uma organização que aqui a gente tem, mas não tão organizada

quanto eles, por isso que é difícil para eles, eu acho, de explicar muitas

coisas para a gente porque a gente não tem condições dentro ali

(FC8).

Possivelmente, o motivo da narração dessa FC pressupõe algumas crenças

comuns à Casa: a justificação por não ter sido curado da doença; a causa da demora

pela cura; a inevitabilidade da doença; a necessidade de inéditos comportamentos; e

outros. Independente de qual suposição esteja correta, seja sobre a causa da doença

ou do efeito da cura, a linguagem revela-se criatura e criadora; e a possibilidade de

novas interações linguísticas apontam que a casa do ser está em expansão, um

caminhar que não necessariamente tem rota definida ou apropriação prenunciada.

Para Heidegger,

84

A linguagem foi chamada de a ‗casa do ser‘. Ela abriga o que é vigente

à medida que o brilho do seu aparecer se mantém confiado ao mostrar

apropriante do dizer. Casa do ser é a linguagem porque, como saga

do dizer, ela é o modo do acontecimento apropriador (HEIDEGGER,

2003, p.215).

Desse modo, para qualquer pessoa, o acontecimento apropriador, como

qualquer vivência, pode ser algo pequeno ou grande dependendo da interpretação

linguística de quem o apropria. Essa versão como aponta Heidegger (2003) não

necessariamente segue uma linha lógica – a lógica entendida filosoficamente, ou seja,

a explicitação, sistematização e validade de princípios e categorias – mas um

direcionamento em que pensamento e descrição poética podem expressar

pragmaticamente o objeto, independente do conhecimento do interlocutor.

Destarte, cabe fazer menção a duas passagens nietzschianas. A primeira:

,

―não há fatos, somente interpretações‖ (CAMARGO, 2008, p.107). Esta mostra que

as versões discursivas sobre as realidades podem variar, igualmente, de acordo com

aquilo que se entende por fato ou verdade; o que leva à segunda – parece que

Nietzsche tinha razão ao afirmar: ―O mundo verdadeiro – é alcançável? De todo modo,

inalcançado. E, enquanto não alcançado, também desconhecido. Logo, tampouco

salvador, consolador, obrigatório: a que poderia nos obrigar algo desconhecido? [...]‖

(NIETZSCHE, 2008, p.31-32). Assim, o que seria o verdadeiro para Nietzsche? Algo

que Platão inventou para afastar o homem desse mundo, não passando, portanto, de

uma fábula. Como a verdade é uma versão que afasta o homem desse mundo, a

realidade – no fundo, o que se entende dela –, mesmo corroída, é aquela que passa

a ditar as legitimações da linguagem no consenso coletivo.

Para Nietzsche, o ser humano vive uma fábula dada pelo consenso social, ou

seja, ele existe nos pensamentos herdados da tradição; e constrói novos edifícios de

linguagem se pautando por aquilo que entende de realidade, uma realidade sempre

instável e esfumaçada. Logo, parece que o humano vive uma metáfora, pois,

conforme Kant, ele apenas tem contato com o mundo fenomênico traduzido para ele

e por ele; nunca se tem reflexo da coisa em si [o nôumemo].

Nessa mesma linha de pensamento, para o filósofo Vattimo, a realidade ―é

mais que o resultado do cruzamento, da ‗contaminação‘ [no sentido latino] das

múltiplas imagens, interpretações, reconstruções que, em decorrência entre si ou, seja

como for, sem qualquer coordenação central [...]‖ (VATTIMO, 1992, p.13, grifo do

85

autor). Assim, é inconcebível que a realidade não exista, mas que ela seja fruto

passageiro dos discursos e ações coletivas.

No entanto, sem se reduzir a um solipsismo relativista, não se pode

desmerecer toda a socialização herdada como os acontecimentos empíricos na

trajetória humana. Se a relação entre linguagem e concretude é dialética, a própria

linguagem também é fruto dessa relação, sem menosprezar os fatos, mas alterando

visões e versões. Igualmente, não se deve ignorar que tais socializações sejam

também interpretações da realidade, a qual vai sendo construída cotidianamente.

Ademais, as linguagens refletem ‗verdades‘ provisórias, que apesar de serem

contingentes, são verdades, pois a casa do ser não é ilusão. Assim, internos à Casa

de Dom Inácio, há inúmeros símbolos religiosos, muitos deles expressos verbalmente.

É justamente por essa ‗linguagem‘ que se adentra à Casa, pela presença da

interiorização e exteriorização. Após estes, analisar-se-á a objetivação.

1.5.1 Interiorização e exteriorização na Casa de Dom Inácio de Loyola

Como estruturas objetivas da sociedade que se subjetivaram, a interiorização

abarca os simbolismos os quais estão alojados na mente humana. Os discursos

sociais passam a ser não só reflexos dessa interiorização, mas igualmente elementos

estruturantes de novas interiorizações. Já a exteriorização abrange ações humanas

observadas. Quando se faz um discurso, a interiorização se exterioriza, possibilitando

uma relação dialética.

Na Casa de Dom Inácio, o grande símbolo divino é Deus. O médium João, ao

subir ao palco da Casa, agradece a presença de todos e assevera, sendo uma fala

frequentemente expressa: ―Eu não curo ninguém, quem cura é Deus‖ (PROGRAMA,

2018, s/p). Correntemente, ele se concentra pela ‗prece de Cáritas‘, e em poucos

segundos começa a chorar, estremece seu corpo, muda sua fisionomia, chama

alguém para fazer uma ou outra intervenção física, dar algum recado e retira-se para

sua sala de atendimento [pode acontecer o contrário, ele atender internamente, depois

vir ao palco]. Em seguida, surge uma série de linguagens proferidas por outros

palestrantes ao grande público no início do dia de atendimento. Sobre os símbolos, é

relevante notar:

Uma mulher inicia com uma prece improvisada solicitando a Deus e

aos cavaleiros da luz, paz, amor e equilíbrio. Após isto, começa o ‗pai-

nosso e ave-maria‘, e termina pedindo para a espiritualidade ajudar a

86

se libertar das expectativas e ansiedades, desacelerando o coração.

‗Sejam todos bem-vindos‘. Vem outra mulher e fala a mesma coisa em

inglês e francês. Em seguida, passa a explicar sobre as intervenções

[até 9 intervenções] e, em decorrência, evitar por 24h celular, TV ou

qualquer aparelho eletrônico, qualquer tipo de esforço e sol. Sendo

hora do repouso (DIÁRIO DE CAMPO, 08.12.2017).

Nessa primeira fala proferida, percebe-se a construção e veiculação de

inúmeras simbologias. A prece improvisada, solicitando paz, amor e equilíbrio mostra,

às pessoas presentes no recinto, os grandes valores que se buscam comumente e

que são importantes na Casa de Dom Inácio. Concebe-se que tais valores são

solicitados para si, independente se são encontrados no mundo externo ou não, mas

considera-se trazê-los para o mundo interno, para vivenciá-los na vida subjetiva. As

orações do pai-nosso e da ave-maria, herdadas da tradição cristã, denotam Deus,

Jesus e a Santa Maria como mentores espirituais de grande liderança e

convencimento. No entanto, mesmo que na oração da ave-maria aponte essa senhora

como sendo mãe de Deus, para o espiritismo – doutrina estudada por muitos na Casa

–, Deus não é Jesus, como geralmente se entende a santíssima trindade. Os espíritas

consideram Jesus um espírito como qualquer outro, porém superior na condição de

modelo e guia. Para o espiritismo, a confusão com a trindade deve-se às sutilezas da

teologia católica, à influência do bramanismo, à má tradução do latim e aos interesses

do Estado. Para Xavier, ―[...] em face da invasão dos povos considerados bárbaros,

se apressaram, no poder, em transformar os ensinos de Jesus em instrumento da

política administrativa, adulterando os princípios evangélicos‖ (XAVIER, 2007, p.90,

questão 264).

Sobre o libertar-se das expectativas e ansiedades enunciadas pela

palestrante – visto que tais características são prejudiciais –, há um pedido expresso

endereçado às Entidades, ela supõe proferir que é difícil encontrar sozinho tais

estados de emancipação, requerendo, por conseguinte, ajuda. Em um dia diferente

de participação etnográfica, a mesma palestrante assegurou que a expectativa ―é uma

maneira de você desejar fortemente que o mundo seja do seu jeito; uma espécie de

controle, de poder. Faz-se urgente que você pare de querer controlar‖ (DIÁRIO DE

CAMPO, 07.02.2018). Não é difícil supor que tal vivência de expectativa resulte em

ansiedade. A ansiedade está ligada à insônia, irritabilidade, déficit de atenção seletiva,

perturbação do entendimento e do raciocínio, possibilitando comorbidades e

desesperança, entre outros sintomas (GAVIN, 2013). Por outro lado, a solicitação de

87

desacelerar o coração, além de se desligar da vida agitada nas grandes cidades,

talvez informe, nas entrelinhas, que há coisas que não podem ser alcançadas ou que

não podem ser realizadas – sendo a expectativa inútil.

Assim, recomendada certa aceitação das vicissitudes da vida, a palestrante

apresenta a Casa de Dom Inácio como um espaço ecumênico; ela recebe os visitantes

com a fala: ‗sejam todos bem-vindos‘; asseverando que independente de qual religião

se tenha – se a tem – não importa, visto que todos os humanos passam por

sofrimentos ou vivem provas e expiações que lhes cabem; além disso, não se revela

a origem econômica, social, étnica ou advinda de outro preconceito, pois se está ali

aprendendo a amar melhor21.

O fato de haver pessoas voluntárias e tradutoras dos discursos e enunciados

para outras línguas, no caso o inglês e o francês – em dias diferentes [houve também

tradução para o alemão] – demonstra a preocupação da Casa de Dom Inácio com as

pessoas estrangeiras que visitam o recinto. Guterres (2013) aponta que 60% dos

frequentadores da Casa são

,

estrangeiros, com predominância de franceses, ingleses,

suíços e austríacos. A mesma autora anuncia que a presença destes se deve

principalmente à cura de doenças física, psíquica e ou espiritual. Em entrevista, um

desses turistas disse sobre a Casa: ―há uma energia que transcende e penetra em

nosso ser transformando o modo de ver as coisas‖ (apud GUTERRES, 2013, p.53).

Acerca dos visitantes estrangeiros, um deles, um senhor norte-americano se

submeteu a uma sondagem nasal [operação espiritual-física], desejando descobrir se

Deus existia. Quando a lâmina entrou em sua narina, sentiu a frieza do aço e uma

grande dor, que durou pouco, dando lugar a uma larga serenidade (MACHADO,

2016). Em entrevista ao Dr. Jeffrey Rediger este senhor disse que passou a acreditar

em Deus porque sobreviveu à sondagem nasal (OPRAH, 2015, s/p).

Em seguida à intérprete, a primeira palestrante retorna esclarecendo sobre as

intervenções físicas e espirituais e sobre os cuidados que se deve ter. Esse momento

bem como o pós-operatório são aspectos que recebem muita atenção na Casa. Em

um dia diferente na pesquisa etnográfica, a palestrante em questão verbalizou sobre

as operações: ―assim como os hospitais quando realizam cirurgias, as cirurgias

espirituais também exigem repouso e cuidados. Cautelas na alimentação e no

descanso‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.02.2018). Quem passa pela primeira intervenção

21 Por significativa que seja essa frase, ela será melhor compreendida no decorrer deste capítulo, no

aprofundamento das experiências ocorridas na Casa de Dom Inácio.

88

deve seguir inúmeros preceitos; além dos anteriores, há outros, entre eles estão: não

praticar exercícios físicos por 8 dias [como ciclismo, dança e caminhada]; não beber

bebida alcoólica durante o tratamento; não consumir pimenta e; abster-se do sexo ou

atividade sexual por 40 dias (GUIA, s/d, p.43).

Seguidamente a esta introdução no palco da Casa de Dom Inácio, chamou-

se um senhor, aparentando 65 anos, que começou a palestrar:

Deus está em nossa mente, por isso também temos poder de curar-

nos a nós mesmos. A árvore genealógica de uma família indica em

média um total de 2054 pessoas constituídas. Se o mundo está repleto

de raiva e ódio, brigas por herança, a família é a única solução para

conduzir a pessoa, daí a gratidão às mães que muito fizeram pelos

filhos e filhas. Se temos problemas, temos saída, pois para tudo há

saída. Estamos aprendendo isso há mais de cem encarnações na

Terra. Por isso trate a mulher com respeito e dignidade, pois se não,

não merece ser chamado de cristão... Pedimos doação de qualquer

coisa, para não somente o aniversário do médium João mas também

para as reformas da Casa. Mas sabe-se que dinheiro não compra

Deus, nem cantinho do céu. Aqui não pregamos religião alguma e

recebemos todos os religiosos com o coração aberto, são todos bem-

vindos. Se hoje tenho doença é porque falta sensibilidade, falta amor,

pois o amor é o maior remédio que existe. Afinal, por que estamos aqui

na Terra? Ontem mesmo eu estava assistindo a um jogo da Copa do

mundo na Rússia e comecei a ver uma rivalidade de ódio e inimizade

– palestrante começa a embargar a voz, e fala chorando: – e pedi a

Deus para acabar com tanta raiva nos esportes. Posso estar errado,

mas nunca mais vou assistir um jogo, perdendo duas horas da minha

vida... – Chorando, continua com voz embargada: Ame mais a Deus,

doe-se, nesse tempo, aproveite para refletir sobre a vida. Cadê os

princípios de fé e moral? ... E vamos cantar Mãezinha do céu.

‗Mãezinha do céu, eu não sei rezar; Eu só sei dizer: Quero te amar...‘.

– Muito emocionado diz: eu gosto de me emocionar, porque vale a

pena. Agora vamos cantar parabéns: ‗Parabéns para você, nesta data

querida...‘. Agora em alemão... inglês... francês... Parabéns a todos

que se dedicam aos trabalhos espirituais, parabéns por você estar

aqui, parabéns por você buscar a cura (DIÁRIO DE CAMPO,

20.06.2018, grifo de ênfase).

Nessa mensagem oral é possível compreender um pouco mais do universo

onde João de Deus e os FC atuam. Tal palestrante concebe Deus não apenas como

Entidade máxima universal da criação, mas igualmente como uma divindade dentro

de cada ser humano. Não se crê que a primeira afirmação desse FC, ―Deus está em

nossa mente‖, seja para alertar da construção simbólica do ente divino vislumbrada

pelas ciências sociais, pois os FC concebem Deus na mente humana, propiciando,

possivelmente, potencialidades que, despertadas, curam dos males e sofrimentos.

Realmente, ainda há muitos fenômenos mentais que a Ciência ainda respondeu; há

89

outros que se começaram a vislumbrar, como os estudos sobre doenças

psicossomáticas em variadas pesquisas psíquicas22.

O segundo ponto observado no discurso do FC em questão diz respeito à

família, não só em relação à grandiosa genealogia dos antepassados e descendentes,

mas ao fato da mesma emergir como ‗única‘ solução de emoções negativas [raiva e

ódio]; ademais, destaca-se também a valorização das mães – a gratidão a estas, as

quais fazem jus ao cognome cristão. Entende-se que o palestrante utiliza a

terminologia família como grupo consanguíneo, porém, em vários vídeos veiculados

pela Casa ou por pessoas curadas, João de Deus, no palco, chama todos presentes

na Casa de ‗irmãos‘, promovendo o entendimento de que o termo não se restringe ao

sangue (CUMMING e LEFFLER, 2008; GARCIA, 2013, PÓVOA, 2016). Por outro

lado, como verificar-se-á, os palestrantes não possuem uma linha teórica ou uma

comunhão de pensamentos, sugerindo ser o amor cristão o denominador comum

entre eles.

Percebe-se, assim, que a compreensão de família do palestrante é individual,

porém, sem desprezar o conteúdo maior, o do respeito e o da dignidade. Se até o

momento a pessoa não assimilou essas qualidades, diz o palestrante, talvez esteja

motivada por uma certa renitência espiritual: ―estamos aprendendo isso há mais de

cem encarnações na Terra‖, dando a entender que ainda há esperança. A considerar

a imortalidade da alma, por conseguinte, a encarnação23 e a desencarnação, os FC

projetam melhoras morais e outras, crendo na evolução espiritual.

A próxima fala do palestrante foi inusual: doações para o aniversário do

médium João24 e para as construções e reformas da Casa. Por mais de vinte vezes

22 Sobre as pesquisas psíquicas, recomenda-se o texto do professor da Universidade de Edimburgo,

nos EUA, Carlos S. Alvarado. Sua preocupação não foi a de provar os fenômenos psíquicos – por

demais evidentes ao longo da história humana, segundo ele –, mas demonstrar como, ao longo do

tempo, vários filósofos e pensadores negligenciaram-nos, trazendo consequências áridas para a

relação mente-corpo. Cf. ALVARADO, Carlos S. Fenômenos psíquicos e o problema mente-corpo:

notas históricas sobre uma tradição conceitual negligenciada. Revista de Psiquiatria Clínica. V. 40.

São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 2013.

23 Encarnação, desencarnação e reencarnação. Para o espiritismo, dizem respeito ao espírito entrar

novamente na carne do corpo ou sair dela, o chamado nascimento e morte. Como o espiritismo enxerga

o tempo de modo diacrônico, Castro (2010) compreende o objetivo da encarnação como ―um progresso

numa evolução linear e sempre do mais imperfeito e incompleto rumo ao mais perfeito, superior e

completo‖ (CASTRO, 2010, p.13).

24 Estivemos na comemoração do aniversário do médium João de Deus, ocorrida logo após o término

dos atendimentos do dia. A festividade aconteceu no estacionamento da Casa, do outro lado da rua.

Por ser próximo à festa junina, todo o local estava enfeitado com bandeirinhas. Financiada,

principalmente pelos donos das pousadas da cidade, a celebração contou com quatro barracas, um

palanque, uma tenda e uma enorme fogueira. Nesse palanque discursaram várias autoridades, as quais

explicitaram suas curas com inúmeros elogios ao médium. Entre as autoridades,

,

estava um coronel da

90

que presenciamos as palestras ao longo da pesquisa, jamais tínhamos ouvido nada a

respeito de doações; porém, sabe-se que a Casa vive de doações, contribuições e

vendas de alguns objetos, mas nenhum pedido havia sido realizado até então. Não é

difícil encontrar pessoas que desconfiam das receitas financeiras da Casa, do

enriquecimento do médium e de outros fatos. No entanto, essa suspeita pode estar

assentada na crença dogmática advinda de Mateus (10, 8) ―curai os enfermos, limpai

os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios: de graça recebestes, de

graça dai‖. Logo, o pedido de doação configurar-se-ia como uma espécie de cobrança

pelos atendimentos, o que não se verificou. O atendimento é gratuito. Paga-se R$

50,00 reais pelo remédio que é vendido na farmácia, cuja responsabilidade é de uma

farmacêutica devidamente registrada Conselho Regional de Farmácia – CRF – GO -

e funcionária da Casa. A medicação é também doada para quem não tem dinheiro.

Assevera Garcia (2013, p.95) que ―a Entidade sabe quando a pessoa não tem

condições financeiras de pagar o que foi receitado‖; e continua o autor:

―frequentemente em alguns dias de atendimento, acontece da Entidade determinar o

fornecimento gratuito para mais de 50% das pessoas atendidas‖ (GARCIA, 2013,

p.96).

É evidente que há vários aspectos que mudaram e que vêm mudando na

Casa, como reformas e novas construções. Atualmente25, estão reformando o antigo

lugar em que sediava a livraria; ela ganhou proporções equivalentes a três vezes

maior que o seu tamanho anterior. Segundo Hamilton Pereira, ex-prefeito de

Abadiânia e atual administrador da Casa de Dom Inácio, a Casa tem registrado em

carteira de trabalho mais de 30 funcionários e contabiliza uma despesa mensal de R$

PM, o atual ministro do STF, Luís Roberto Barroso, o governador de Brasília, Rodrigo Rollemberg, o

empresário e político brasileiro Paulo Skaf, João de Deus, sua esposa e filha, junto a outro filho do

médium – este escreveu e leu um poema dedicado ao pai – e outras pessoas. Terminados os discursos,

acenderam a fogueira e deram início a uma queima de fogos, que contribuiu com a poluição

atmosférica. Ao fim da queima, houve uma salva de palmas e um convite para que todos saboreassem

os comes e bebes. Logo uma banda musical subiu ao palanque e tocou vários estilos. As mais ou

menos 400 pessoas direcionaram-se às barracas para se servirem gratuitamente de: água de coco

gelado, lanche, sopas, doces, refrigerante, arroz carreteiro e outros. Ao fundo, do lado das barracas,

numa tenda com segurança na porta, as autoridades jantaram. Próxima à entrada desse espaço, foram

servidos dois bolos grandes, no tamanho e na altura, para todas as pessoas presentes na

comemoração. Observamos diversas pessoas com roupas simples e modestas, cuidando de muitas

crianças; pareciam ser moradoras da cidade, porém, não necessariamente frequentadoras da Casa. A

alegria das crianças era evidente, brincavam aqui e acolá. Muitos jovens e adultos se balançavam com

as músicas. Fomos embora às 23h. Ficamos sabendo que até às 3h da manhã ainda havia gente na

comemoração. Tiramos uma foto com o aniversariante, uma rara oportunidade (DIÁRIO DE CAMPO,

22.06.2018).

25 Primeiro semestre de 2018.

91

90.000,00 mil reais (NICACIO e LOES, 2012, s/p) e quando falta dinheiro, João de

Deus, fazendeiro e dono de mineradoras (CUMMING e LEFFLER, 2008), custeia a

falta com recursos próprios26. Assim, é relevante ressaltar que a receita básica da

Casa advém da farmácia, da lanchonete e da livraria, mas também de doações

(GARCIA, 2013). De modo geral, para um atendimento de mais de 3 mil pessoas por

semana, os serviços prestados pela Casa satisfazem os visitantes.

A continuar a preleção, o palestrante esclarece que a Casa é um templo

ecumênico. Muitos frequentadores possuem uma impressão – errada – de estarem

entrando num centro espírita, talvez por alguns procedimentos advindos de Entidades

espirituais como água fluidificada, mediunidade, passes, livros de Allan Kardec na

livraria e outros. Porém, na Casa paira uma espécie de sincretismo: há diversos

símbolos católicos – mormente na sala de atendimento do médium – como grandes

estátuas da virgem Maria, quadros de santos católicos, terços, persignações e outros.

Há um quadro budista exposto no salão da Casa, presente do Dalai Lama. Em muitas

aparições em público, o fato de a Entidade andar descalça advém de um histórico

pregresso do médium João na umbanda. Além disso, existem símbolos da Nova Era27,

especialmente temas ligados à cromoterapia e a chacras. Há também pedras cristais

de vários tamanhos dispersos na sala de atendimento e na livraria para venda.

A Casa de Dom Inácio parece um centro espírita, mas não é. Também

não é uma igreja católica ou evangélica. Trata-se de um templo

ecumênico. Na Casa de Dom Inácio, já foram realizadas missas e

cultos evangélicos. Todas as religiões são bem-vindas à Casa de Dom

Inácio (GARCIA, 2013, p.109).

Uma das maneiras de entender o ecumenismo é a ausência de pregar uma

religião ‗x ou y‘ ou fazer proselitismo. Eis aí justamente algo que para alguns

incomoda, pois o fato de não haver pregação de determinada doutrina atormenta

diretamente porque a percepção é de que as pessoas não entendem ou não

aprendem a decidir o caminho da autotransformação. Em entrevista à antropóloga

Cristina Rocha, uma dirigente de centro espírita, preocupada em propagar ideias e

26 Procurando atualizar esses valores para 2018, o FCe disse que há um gasto mensal de duzentos mil

reais na Casa; ―são 20 mil só em energia elétrica‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.01.2019).

27 O assunto Nova Era será contemplado especificadamente no segundo capítulo. Por agora, é

importante ressaltar que o mesmo se refere a um movimento espiritualizado heterogêneo e não

convencional eclodido dentro da contracultura dos EUA na década de 1950, chegando ao Brasil nas

décadas de 1960 e 1970. São pessoas ligadas ao transcendentalismo, esoterismo, ocultismo e outros

espiritualismos, realizando uma espiritualidade sem religião (CAMPANELLA e CASTELLANO, 2015).

92

métodos de cura de João de Deus em Sydney, Austrália, asseverou: ―O seu João

corta e cura, mas não evangeliza. Então a pessoa vai embora e não aprende nada,

não começa a trilhar o caminho‖ (ROCHA, 2009, p.582). Possivelmente, para essa

senhora, a evangelização esteja ligada a alguma religião ‗x‘, já que a etimologia da

palavra ‗evangelho‘ pode significar esperança cristã. Por outro lado, é precisamente

essa liberdade de escolha que outros festejam: ―A Casa não prega religião nenhuma.

E eu acho bacana isso porque as pessoas são livres. O que se prega é o amor, o

amor e a conexão com Deus. A conexão é que nem a Entidade fala: ‗a primeira missão

da gente é com a gente mesmo‘‖ (FC8).

A partir das observações, caso se fosse inflexível nas definições, dir-se-ia que

a Casa se declara ecumênica porque tem sua predileção por Cristo, pois o movimento

ecumênico, nascido em meados do século XIX, em meio aos protestantes, explicita

sua inclinação pela corrente cristã. Isto não significa que João de Deus exclua

religiosos não cristãos como budistas, hinduístas ou seguidores do candomblé, pois

ele mesmo sempre diz: ―todas as religiões são boas‖ (apud GARCIA, 2013, p.23),

―mas alguns dirigentes são problemáticos‖ (DEPOIMENTO, 2017, s/p). Por outro lado,

João de Deus se julga católico e crê na Loja Maçônica. Sabemos que a etimologia da

palavra católico quer dizer justamente universal [do grego kata – juntos e holos – todo].

Destarte, em visão etimológica, João de Deus pode ser considerado um católico

exemplar. Em entrevista, ele declarou:

A minha crença é universal. Eu acredito no criador. Acredito em Nossa

Senhora. Acredito nos Apóstolos e na verdadeira Loja Maçônica.

Como posso dizer que sou espírita, se conheci Chico Xavier, a quem

,

ESPIRITUAIS............ 221

2.6.1 Greenfield e a aproximação etológica do espiritismo......................... 226

2.6.2 O modelo etiológico da antropologia................................................... 230

CAPÍTULO III – A PARTICULARIDADE DO ESPIRITISMO NO PROCESSO

DE SAÚDE-DOENÇA: AS VOZES DOS(AS) FILHOS(AS) DA CASA SOBRE

AS INTERVENÇÕES ESPIRITUAIS.................................................................

235

3.1 SOFRIMENTO, DOENÇA E RELIGIÃO................................................... 236

3.2 NASCIMENTO E AGONIA DO MODELO BIOMÉDICO............................

3.3 RELIGIÃO, ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: NOVAS CONEXÕES...........

239

246

3.4 TERAPIAS ALÉM DO EFEITO PLACEBO: VITALISMO E EFICÁCIA

SIMBÓLICA.......................................................................................................

254

3.5 SENTIDOS E SIGNIFICADOS DAS INTERVENÇÕES ESPIRITUAIS

VIVENCIADAS PELOS(AS) FILHOS(AS) DA CASA........................................

265

3.5.1 Sentidos de cura para os(as) Filhos(as) da Casa................................ 296

3.6 CORPO E ALMA NO ESPIRITISMO COMO ARENA DE

APRIMORAMENTO..........................................................................................

307

3.7 O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA PARA O ESPIRITISMO E A

IMPORTÂNCIA DO FLUIDO UNIVERSAL........................................................

313

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 321

REFERÊNCIAS................................................................................................. 328

APÊNDICE I – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO....... 349

APÊNDICE II – QUESTÕES NORTEADORAS DAS ENTREVISTAS............... 352

ANEXO I – PARECER CONSUBSTANCIADO – CEP PUC-Goiás.................... 353

13

INTRODUÇÃO

Desde que o tema das intervenções espirituais surgiu no Brasil, no ano de

1945, com o ‗Caso de Pindamonhangaba, SP‘ – cujas especificações serão realçadas

no capítulo três, tais como o médium Bello, cercado de pesquisadores científicos,

médicos e juristas, ter fornecido seu ectoplasma na extração de uma apendicite –

emergiram participações, atenções e oposições relacionadas a essa temática. As

participações fazem referência àqueles que estão adoentados, precisando de cura e

de alguns espiritualistas no fortalecimento da fé. As atenções são relativas aos poucos

profissionais e ou pesquisadores acadêmicos, que examinaram alguns médiuns,

dentre os quais se destaca o mineiro José Pedro de Freitas [conhecido como Zé Arigó,

1921-1971], que afirmava receber o espírito do Dr. Fritz. Aparentemente, após o

falecimento do médium, esse espírito continuou seu trabalho de incorporação em

outros médiuns. No que tange às oposições, estas ficavam mormente sob a

responsabilidade da igreja e de associações médicas, que exigiam a polícia no

encalço dos médiuns curadores.

A excentricidade das intervenções espirituais levantou inúmeras dúvidas e

suspeitas sobre a existência de fraude, charlatanismo e até mesmo da presença de

‗algo demoníaco‘. Alguns céticos, após a averiguação das intervenções espirituais

com médiuns, comprovavam inautenticidade dos espíritos (GREENFIELD, 1999) ou

saíam desiludidos sem nada desmascarar (DEPOIMENTO, 2017). Com João de

Deus, não foi diferente, pois houve oposições e prisões do médium e inúmeros relatos

de restabelecimento da saúde de várias pessoas. Aos poucos, as intervenções

espirituais ganharam divulgação, aumentando o número de indivíduos à procura das

mesmas. Além disso, o médium João de Deus alegou que servia, em 1985, 58 mil

pratos de sopa anualmente àqueles que procuravam pela ajuda (PROGRAMA, 1985,

s/p); em 2013, esse número subiu para 150 mil (GARCIA, 2013).

Nesse contexto, a presente tese tem por objeto as intervenções espirituais

com João de Deus, que atendia na Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, GO.

É comum encontrar na Casa de Dom Inácio testemunhas de sua terapêutica. Garcia

(2009) expõe o caso do senhor Deraldo Menezes, residente em Osório, RS, que em

um acidente, caiu e machucou a perna esquerda. Deraldo procurou tratamento médico

e fez vários exames resultando em nulo o diagnóstico. As dores pioraram e o quadro

evoluiu para uma osteomielite, com a perna apresentando necrose acelerada. Os

14

médicos declararam como única solução a amputação do membro. Alguns conhecidos

do senhor Menezes orientaram-no a procurar João de Deus. Ele então dirigiu-se para

Abadiânia e o médium João solicitou que ele frequentasse a Casa de Dom Inácio por

alguns dias, iniciando o tratamento espiritual. Na semana seguinte, houve uma

melhora acentuada na perna, tendo como resultado a ausência de dor. Quarenta dias

depois, após a revisão com o médium João de Deus, o senhor Menezes recebeu alta

e voltou a ter uma vida normal.

Relatos e depoimentos como esse são frequentes na Casa de Dom Inácio,

mobilizando investigações de alguns pesquisadores. Entretanto, seria a intervenção

espiritual consequência da fé em Deus, da credulidade no médium, da capacidade

simbólica da mente, de efeito placebo ou de outra razão?

Para tanto, define-se intervenção espiritual como uma operação visível e ou

invisível na pessoa enferma, de forma presencial ou à distância, sob o comando do

médium ou das Entidades. Na Casa de Dom Inácio, as intervenções espirituais

acontecem normalmente sem corte. No entanto, quando há pessoas que recebem

incisões, estas não sentem dores; poucas percebem leve dor. Não sofrem infecções

e o lugar da lesão rapidamente se regenera. Por esses e outros fatores, inúmeras

pessoas do mundo inteiro, em busca de recuperação da saúde, procuraram o médium.

É pertinente destacar que desde dezembro de 2018, o médium João de Deus

está encarcerado como réu por graves acusações: violação sexual, estupro, estupro

de vulnerável e posse ilegal de armas. O Ministério Público de Goiás recebeu mais de

trezentas denúncias contra o médium, a maioria de mulheres; uma das filhas de

sangue do médium o acusa de estupros seguidos; o médium e um de seus filhos estão

sob acusações de corrupção e coação de testemunhas, e outras imputações que

enfraquecem o médium e solapam sessentas anos de histórias de cura. Há relatos de

que os abusos praticamente se iniciaram em 1975, em Abadiânia, e continuaram até

2018 (DIÓGENES, 2019; PORTINARI, 2019). Contudo, desde as incriminações do

médium João de Deus, tudo o que aconteceu na Casa reflete diretamente aquilo do

qual ele está sendo acusado: inúmeros Filhos da Casa deixaram de ser frequentes ou

não vão mais ao recinto da Casa – dos 80 frequentes, restam 28, mas a previsão,

segundo um Filho da Casa é ainda de queda; algumas pessoas que foram curadas

no passado pelo médium, após a prisão deste, tiveram o retorno de sua doença, e

muitas vieram a falecer; alguns Filhos da Casa – dentre estes, alguns visivelmente

idólatras –, negando ou evitando aceitar o envolvimento do médium nesse escândalo,

15

não desmerecem que o médium seja vaidoso e ganancioso; um Filho da Casa garantiu

que a Entidade rei Salomão disse há dois anos que o médium seria preso (DIÁRIO

DE CAMPO, 18.06.2019). Diante desse atônito acontecimento, deve-se prestar

atenção aos relatos da vítimas, averiguá-los e, caso afirmativo, tentar reparar a

crueldade realizada, seja com indenizações e encaminhamento a especialistas para

às sofrentes, e prisão do médium, multas e outras que se fizerem necessárias na

justiça diária.

Se, como afirmou Kardec (2013), a mediunidade é uma capacidade orgânica,

não vinculada à moralidade, então, os impulsos animais que o egoísmo e o orgulho

protegem – em gritante contradição com as verbalizações que os princípios cristãos

professados sugerem – devem ser contidos e sublimados. Os Direitos Humanos

devem ser respeitados, e o culpado, responsabilizado

,

chamam o Papa do Espiritismo? Como posso me comparar a ele? Tive

a honra de carregar o corpo de Chico Xavier para a Sepultura [...]

(apud CUMMING e LEFFLER, 2008, p.36).

Ademais, o ecumenismo está presente no estatuto da Casa de Dom Inácio; e

um de seus preceitos é sua opção pela caridade a todos: ―Praticar a caridade

espiritual, moral e material por todos os meios ao seu alcance, sem distinção de sexo,

raça, credo religioso ou convicções políticas e filosóficas, sem visar a qualquer

retribuição‖ (apud GARCIA, 2009, p.49).

Por outro lado, o médium João suspende o significado comum de religião ao

esclarecer que Cristo não fundou nenhuma religião, alegando que mediunidade não

93

se relaciona com o sistema de doutrinas e rituais, desvinculando, dessa forma,

mediunidade de religião28:

Minha missão nada tem a ver com religião. Conheci Chico Xavier e

tenho profunda admiração por sua obra e pelo espiritismo, da mesma

forma que respeito os evangélicos. Mediunidade não depende de

religião. Religião é criação do homem, e mediunidade não. Cristo

pregou o amor e a caridade, sem tendência para qualquer seita

religiosa (apud GARCIA, 2009, p.36).

A próxima frase do FC5: ―Se hoje tenho doença é porque falta sensibilidade,

falta amor, pois o amor é o maior remédio que existe‖ remete o estudo a uma

constante na Casa de Dom Inácio, ou seja, o amor é tema recorrente de grande monta

nos discursos dos palestrantes e frequentadores; aparentemente, o sentimento do

amor assemelha-se a um iceberg de luz, do qual se pode observar apenas uma ponta.

Não só no sentido de ‗ausência de amor resulta em doença‘, mas tendo saúde é

resultado de amor a si. No entanto, essa lógica se mostra frágil, pois nem toda doença

é falta de amor, se assim fosse, pessoas amorosas não teriam doenças ou não

morreriam delas. Por outro lado, sabe-se que as emoções estressantes modificam

estados orgânicos, propiciando doenças; e estados emocionais positivos estimulam e

fortalecem o sistema imunológico. Emoções como raiva, amor e medo ―não apenas

levam um homem a realizar atos exteriores, mas provocam alterações características

na sua atitude e fisionomia e afetam sua respiração, circulação e outras funções

orgânicas de forma específica‖ (CRUZ e PEREIRA JÚNIOR, 2011, p.58). Se o

sentimento de amor – que o observador externo não percebe – e os atos que ele

impulsiona não é a resposta para tudo, não obstante, sabe-se que é um poderoso

28 Dias (1985), pesquisador e defensor da tese de que o espiritismo não é religião, [para ele,

filosoficamente o espiritismo pode ser considerado um ‗laço de fraternidade‘, mas não um culto, de ritos

religiosos] concordaria com João de Deus sobre a mediunidade. Esta não é exclusiva do espiritismo,

mas provavelmente um fenômeno natural, originado de leis naturais, disponível a todos os povos.

Citando Kardec [Revista Espírita, ano IV, n. 10, 1861], Dias aponta sobre a universalidade do

espiritismo: ―O espiritismo repousa sobre a possibilidade de comunicação com o mundo invisível, isto

é, com as almas. Ora, como os judeus, os protestantes e os muçulmanos têm almas como nós, resulta

que estas podem comunicar-se, tanto com eles quanto conosco, e que, consequentemente, eles podem

ser Espíritas como nós‖ (KARDEC apud DIAS, 1985, p.110). Mesmo Dias (1985) propondo certa

unanimidade da mediunidade como princípio natural, ainda nos deparamos com controvérsias, visto

que João de Deus se diz católico, não ‗católico espírita‘ – como propõe Kardec pelo exposto acima –

sendo que o único espírita que o médium de Abadiânia conheceu foi Chico Xavier. Isto leva refletir que

talvez essa seja uma contenda sem fim, visto que não há entendimentos comuns sobre quase tudo no

mundo da linguagem. Contudo, não se pode negar que o espiritismo atual, de modo geral, fechou-se

em religião – com todos os sabores e dissabores que isto acarreta –, não é mais uma filosofia de vida,

mas quase um conjunto dogmático de verdades codificadas e estabelecidas, dizem, por Kardec. No

próximo capítulo ver-se-ão melhor tais discussões.

94

estimulante de ações humanas. Talvez isto comprova e fundamenta as ações de João

de Deus e de mais de trezentos voluntários que lá comparecem diariamente nos dias

de atendimento.

Nos recintos da Casa, o triângulo é ícone primordial, não só porque é o

símbolo da Casa de Dom Inácio, mas porque seus três lados representam fé, amor e

caridade. Estas são características que os palestrantes incentivam para que cada ser

humano possa individualmente experimentar e vivenciar, não só no sentido da própria

cura, mas para possivelmente curar o próximo, amar a si para amar o outro. Esse

estado, resultado da tripla instrução, inicia-se pela fé, aprendendo o amor29 e

praticando a caridade, informa o FC5.

Todo mundo sai à procura e nada disso nós vamos encontrar lá fora,

tudo isso que nós procuramos está dentro de nós. O importante é que

a gente aprende sempre muito. Em primeiro lugar tudo começa por

nós; se nós não estamos bem, como é que vamos ajudar o outro? Se

nós não nos amarmos, como vamos amar o nosso próximo? Se nós

não nos perdoarmos, como é que vamos perdoar o nosso irmão?

Tudo, tudo... Se não formos caridosos conosco, não temos como fazer

caridade. Se ajudar, para ajudar! Tudo, tudo, tudo na vida começa por

ti. Primeiro a si mesmo. E o triângulo da casa de Dom Inácio resume

bem isso daí: fé, amor e caridade. Começando do lado esquerdo, fé,

amor e caridade. A fé para chegarmos, através da mudança, à cura.

O amor que Jesus veio ensinar para todos nós... Amor é Deus! E a

caridade é que nós temos que ter para com todos (FC5).

Possivelmente, a atitude de amar a si mesmo, em primeiro momento, leve o

homem a se questionar o porquê da existência e a amar Deus como uma forma de

sair do egoísmo interno – espraiando para outros seres da natureza e âmbitos sociais

– a colocar em magnitude princípios de fé e moral, a não se permitir mais praticar atos

distantes do amor, afirmou o palestrante anteriormente: ―nunca mais vou assistir a um

jogo‖, chorando e falando raivoso o ―nunca mais‖, frisando para todos ouvintes a

importância dessa autocrítica.

29 Aprender a amar possivelmente tenha sido o objetivo primordial do sociólogo, filósofo e psicanalista

alemão Erich Fromm na obra A arte de amar. Pretende o autor, já que para qualquer aprendizagem de

atividade artística ou arte – música e pintura, por exemplo – exige-se treino e persistência, que o

humano apreenda, assimile e pratique o amor como resposta ao problema da existência humana.

Segundo esse pensador, ―Amor é uma atividade, e não um afeto passivo; é um ‗erguimento‘ e não uma

‗queda‘. De modo mais geral, o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes

de tudo, consiste em dar, e não em receber‖ (p.44-45, grifos do autor).

95

Sem verbalizar diretamente o amor como sentimento-atitude, muitos passam

pela Casa e relatam suas experiências. Desta forma, mesmo não expressando a

palavra, percebe-se o amplo acontecimento:

[Regina Mara, advogada, Minas Gerais – Brasil]

Conheci a Casa em 1995. Minha irmã, na época, apresentou

esse lugar maravilhoso e abençoado, logo que descobri um câncer

linfático. Depois da retirada do nódulo pelo oncologista, fui

encaminhada ao hematologista, e ele recomendou-me um ciclo de

quimioterapia no Hospital das Clínicas em Belo Horizonte. Foram 3

anos de tratamento. Após o primeiro ano fui a uma casa espírita

conhecida e o médium me informou que minha cura seria temporária;

em cinco anos a doença voltaria. Hoje, penso que a espiritualidade

estava me aguardando em Abadiânia. Meus cabelos eram lindos e

bonitos, foi muito difícil vê-los cair com uma rapidez alarmante. No

primeiro ciclo, caíram quase de uma vez, cheguei a Abadiânia usando

peruca e pedindo para desencarnar. Mesmo espírita, eu estava

perdendo minha fé. Meu filho dizia-me inocentemente:

,

―mamãe, seu

cabelo vai crescer e você voltará a ser linda novamente‖. Sofri

demasiadamente. Entre muitas lágrimas, apeguei-me a meus

conhecimentos espíritas e acreditei que nada era por acaso, de

alguma forma, iria transcender meu carma. Eu estava reparando

alguma coisa de outra vida, e tinha a consciência de ser filha de Deus.

Ao chegar à Casa de Dom Inácio de Loyola, desesperada, implorei

que minhas dores fossem amenizadas se fosse necessário continuar.

Pedi-lhe ajuda para poder ir embora mais rápido se fosse inevitável.

Ajoelhada eu estava diante do Dr. Augusto de Almeida que, para

minha comoção, secou minhas lágrimas com suas próprias mãos,

perguntando se eu tinha fé. Naquele momento, fragilizada e doente,

senti-me perdida e sem minha crença. ―Eu vou te ajudar, você confia?

Você precisa vir aqui por 12 vezes e então vai receber a graça da

cura‖. A previsão de Augusto se concretizou um ano depois,

exatamente em setembro de 1996, na décima segunda vez. Tudo

estava previsto para a realização de transplante de medula óssea,

estranhamente nunca obtive doador compatível. Lembro-me de que a

Entidade fez observações sobre como era o procedimento de trocar o

sangue e quanto minhas células boas estavam misturadas a doentes.

Acredito que as Entidades estavam realizando o procedimento de

transplante espiritualmente. Embora sempre me orientassem a

continuar o tratamento com médico da terra. Voltei ao médico, meus

exames foram analisados para que eu fosse preparada para o

transplante. Milagrosamente, tudo estava perfeito com minhas células.

Eu estava curada. Tudo se transformara com meu tratamento na

corrente. O médico suspendeu o transplante e sugeriu somente um

coquetel de prevenção, ao qual tive rejeição e acabou sendo

suspenso. Informei-lhe que havia recebido alta do tratamento da Casa

de Dom Inácio, e ele, diante dos ótimos resultados dos exames,

escreveu um belo ‗parabéns‘, embora não tenha se convencido do

plano espiritual. Permaneci realizando controles periódicos em dois

anos, através de exames de sangue e de nódulos. Em três anos a

medicina convencional me deu alta. Na época, o meu caso no hospital

96

foi o único de sobrevivência. Sou um caso inexplicável de cura na

clínica.

Estou curada faz quinze anos. Costumava dar meu depoimento

no palco da casa. Permaneço frequentando a corrente, sinto que

agora é momento de doar, de ajudar o próximo com minha energia,

pois minha doença foi veículo para isso. Em Abadiânia, o tratamento

é completo, as Entidades costumam incluir os médicos da terra no

tratamento de seus pacientes, e o trabalho passa a ser em conjunto.

Tudo, impressionantemente, vai se solucionando; as respostas

chegam e tomam seu lugar. Na corrente, aprendemos a acreditar e a

perdoar, crescer espiritualmente até conquistar o merecimento. Muitas

vezes, tive sensações de corte no abdômen e percebi a presença de

espíritos de branco no meu quarto. Houve momentos que, ao passar

pela Entidade, ela levantava minha blusa e fazia um X no meu

abdômen, depois eu sentia os cortes internos. Nesses momentos ela

sempre me mandava para a corrente.

Foi inesquecível, um momento lindo o dia que recebi alta e

descobri que era filha da casa. Estavam presentes 15 pessoas com

diagnósticos semelhantes. Coincidentemente, as pessoas estavam

próximas na fila em ordem planejada pelo mundo espiritual e todas

foram recebendo alta. Ao chegar a minha vez, recebi uma flor da

Entidade, que, de branca, transformou-se em vermelha. A minha flor

era a única vermelha da casa. Só havia rosas brancas naquele dia.

Um mês depois, descobri que fora Santa Terezinha o ser que me

presenteou com a flor; meu caso tornou-se conhecido na época, sendo

relatado para cientistas americanos que estavam na casa, analisando

o grau de mediunidade do médium, sua capacidade energética, e os

fenômenos sobrenaturais, como o da água fluídica que por seu

magnetismo tem nela o poder de se tornar um remédio salutar. [...]

Este fato marcou minha vida. Por isso terei que agradecer esta casa

bendita e os anjos que aqui estão eternamente (apud XAVIER, 2017,

p.232-236).

Nesse depoimento observa-se a tríade expressa no triângulo da Casa: fé,

amor e caridade. De alguma forma, o câncer dessa mulher a estimulou para inúmeras

atitudes de ampla expressão e, em consequência, talvez um maior amor a si mesma,

contribuindo com sua cura. Não se pode afirmar que sua doença foi como relatou

anteriormente o FC2, ou seja, por ―falta de amor‖, mas sem esse sentimento pouco se

poderia fazer. Outro FC alertou que o espiritismo considera o amor como o refino

maior do sentimento, e citou Kardec:

O amor resume toda a doutrina de Jesus porque é o sentimento por

excelência, e os sentimentos são os instintos elevados à altura do

progresso realizado. No seu ponto de partida, o homem só tem

instintos; mais avançado e corrompido, só tem sensações; mais

instruído e purificado, tem sentimentos; e o amor é o requinte do

sentimento (KARDEC, 1991, p.147-148)

97

Ao discorrer sobre interiorização e exteriorização na Casa de Dom Inácio, vê-

se que o assunto é extenso e instiga mais análises, como se pode notar neste capítulo

e trabalho. O intuito principal foi trazer as simbologias gerais interiorizadas-

externalizadas que perpassam o espaço em questão. Expressões como: Deus é quem

cura, amor, paz, equilíbrio, preces, orações do pai-nosso e ave-maria, pedidos de

ajuda, intervenções espirituais invisíveis e físicas com seus cuidados, doenças

psicossomáticas ou não, templo ecumênico, parar de controlar, agradecimentos à

família, doações, ausência de simonia, doença como ausência de amor e outros

mostram que a extensão da interiorização e exteriorização é ampla, indo além do

escopo desta tese, e que a construção simbólica se entremeia a inúmeras linguagens,

ensinos e experiências.

Assim, será abordada, a seguir, a objetivação, não apenas no sentido do que

é fisicamente construído na Casa de Dom Inácio, mas procurar-se-á evidenciar essa

zona clara-escura em que a externalização se materializa. Como a Casa não existiria

sem João de Deus, a abordagem será pelas objetivações dessa pessoa, cujo nome

de batismo é João Teixeira de Faria.

1.6 Objetivações na vida de João Teixeira de Faria, o João de Deus

João Teixeira de Faria nasceu goiano, na cidade de Cachoeira de Goiás –

antiga Cachoeira da Fumaça – em 24 de junho de 1942, sendo o mais novo dos seis

filhos. O pai era alfaiate e a mãe cuidava dos rebentos em um casebre, onde

moravam, ao lado da igreja católica. Buscando uma vida melhor, quando João tinha 3

anos de idade, os pais se mudaram para Itapaci; cidade distante de Cachoeira de

Goiás, aproximadamente, a 330 quilômetros de Brasília.

A cidade possuía estradas sofríveis – no contexto da época, generalizando

para muitas cidades do interior do Brasil – e os meios de comunicação eram escassos.

Mas não era um caso isolado. O próprio Estado de Goiás – considerado sertão ou

terra de ninguém até o final do século XIX – desde o início do século XVII – foi

devassado por colonos saídos de São Paulo em busca de ouro e de índios para

explorá-los como escravos. Poucas mudanças aconteceram desde então. A principal,

no Brasil, foi a libertação dos escravos, em 1888; uma outra foi o impulso

desenvolvimentista de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945. ―Embora o impulso

urbanizador tenha permitido o surgimento das primeiras vilas e cidades, ele foi produto

98

de uma economia de exploração predatória [...], sem investimento em tecnologia e

baseada em trabalho escravo‖ (MACHADO, 2016, p.90).

Os melhoramentos urbanos e serviços públicos eram raros ou inexistentes em

muitas cidades, inclusive em Cachoeira de Goiás, Itapaci e Anápolis. Tudo começou

a mudar com a implantação da ‗Marcha para o Oeste‘, proposta pelo Estado Novo de

Getúlio Vargas, com o objetivo principal de integralizar o Brasil. Atendendo ao pedido

presidencial,

,

a elite latifundiária cedeu a uma pequena reforma agrária, recebendo

migrantes de vários lugares. Foi nesse movimento social que os pais do médium João

saíram de Minas Gerais com o sonho de serem pequenos produtores. Mas como

habitualmente acontece, a realidade é diferente da promessa política.

A família instalada em Itapaci, com a profissão do pai, – José Nunes de Faria

[alcunha de seu Juca] – mal conseguia sobreviver à pobreza. Com o intuito de ajudar,

a mãe, Francisca Teixeira Damas, alcunha de dona Iuca, ‗cortava baralho‘ como

cartomante – possivelmente exercendo sua mediunidade (MACHADO, 2016) – e

‗lavava roupas para fora‘. O menino João exerceu inúmeras profissões a partir dos

seis anos, entre elas a de cortador de tecidos na alfaiataria do pai, candeeiro, servente

de pedreiro e engraxate. O próprio João relata um momento de agrura nessa fase: ―no

tempo em que vivi em Itapaci, passei fome, mas nunca fui desonesto‖ (apud

GARCIA30, 2013, p.11). Certa feita, viu um homem comendo melancia, depois que ele

acabou e jogou a casca fora; João não teve dúvidas, pegou do chão e se alimentou.

Sobre sua escolaridade, apesar de alguns livros narrarem que João estudou

até o segundo ano do Ensino Fundamental (ALVES, 2012; CUMMING e LEFFLER,

2008), ele frequentou apenas três meses os bancos escolares (GARCIA, 2009). A

frequência na escola advinha porque ele enchia a caixa d‘água da escola como forma

de pagamento. Assevera João de Deus: ―eu começava a bombear água às 5 horas

da manhã, alternando o bombeamento com a mão esquerda e a mão direita. Às 7

horas a caixa estava cheia e eu ia para a sala de aulas‖ (apud GARCIA, 2009, p.30).

Logo depois, os padres venderam a escola e os novos proprietários proibiram o

escambo com o garoto; João foi expulso por não ter condições de pagar. ―A falta de

30 Esse autor, Ismar Estulano Garcia, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás,

professor universitário e advogado gratuito de João de Deus, é considerado pelo médium mais que um

amigo; é seu biógrafo principal (MACHADO, 2016). De modo geral, todas as biografias sobre o médium

dizem o mesmo sobre seu passado, mudando poucos fatos, não só do biografado como dos

testemunhos de cura que as acompanham. Devido a isso, optou-se preferencialmente pelas obras de

Garcia (2013 e 2009).

99

condições financeiras dos pais influiu, e muito, na formação escolar dos filhos: João

de Deus é quase analfabeto, sabendo apenas assinar o próprio nome‖ (GARCIA,

2009, p.06) e, frequentemente, em suas entrevistas e mensagens orais no palco da

Casa, nota-se o emprego da linguagem informal. Segundo Machado (2016), a

expulsão da escola causou em João o grande pesar de sua infância.

Tais fatos – falta de estudo e a fome – estigmatizaram mensagens em sua

mente. Atualmente, João de Deus mantém a Casa da Sopa, uma instituição do outro

lado de Abadiânia, a qual, nos dias de atendimento, serve café da manhã e almoço

para quem tem fome e precisa de roupas; além disso ele oferece pratos de sopa na

própria Casa de Dom Inácio, o que totaliza quase duas mil refeições servidas

diariamente de modo gratuito nesses espaços. A respeito de educação escolar,

sabendo das dificuldades dos que não possuem recursos financeiros, o médium já

auxiliou mais de trinta pessoas a conseguirem seu diploma de curso superior

(GARCIA, 2013) e construiu uma Casa no sul do país para reabilitação de

dependentes químicos (CUMMING e LEFFLER, 2008).

Antes de completar dez anos de idade, João passou por quatro fatos

relevantes, os quais são dignos de se apontar: a) com o pai, que era também ‗raizeiro‘,

ou sob influência espiritual, aprendeu a fazer garrafadas com ervas silvestres a serem

usadas como remédios contra doenças [ele saía para o mato, acompanhado de

moradores da região e apontava para estes as plantas corretas e a quantidade certa.

Por causa dessas e de outras práticas, era chamado de ‗bruxinho‘ pelos familiares];

b) Como traquinagem, atirou uma pedra no padre, tido como maior autoridade local.

O sacerdote excomungou-o. Ao contar para a mãe, esta disse para não ter medo e

começaram a rezar para Nossa Senhora de Fátima. Para surpresa de ambos, a santa

se materializou e, mais tarde, sua mãe criou uma oração dedicada ao filho, intitulada

‗Pai Nosso Pequenino‘ (MACHADO, 2016); c) O primeiro encontro com o mestre

Yokaanam31 e; d) o início de sua mediunidade, em forma de premonição. Com nove

31 Yokaanam nasceu Oceano de Sá [1911-1985] e foi piloto da Força Aérea Brasileira até sofrer grave

acidente. Saiu do hospital e dedicou-se à espiritualidade. Idealizador, místico, profeta e médium,

conhecido como mestre Yokaanam, inspirado pela ‗Marcha para o Oeste‘ de Getúlio Vargas, viajou

com 400 pessoas do Rio de Janeiro até Santo Antônio do Descoberto [a 50 quilômetros de Brasília]

fundando a ‗Comunidade Eclética Nova Palestina‘, conhecida como Cidade Eclética. Yokaanam

conheceu o menino João e, encantado pelo mesmo, pediu à mãe que lhe desse o filho. A mãe

respondeu: ―Filho dela não era cachorro para ser doado‖ (apud MACHADO, 2016, p.97). Isto foi grande

prova de amor materno, segundo João de Deus: ―Lembro muito bem do dia que o mestre Yokaanam

pediu à minha mãe para ‗me dar‘ e que ele iria fazer de mim um doutor. Pela conversa entre os dois,

tive certeza do amor de minha mãe‖ (apud GARCIA, 2013, p.22, grifo do autor). Porém, durante suas

100

anos de idade, indo com a mãe para o povoado de Nova Ponte, distante vários

quilômetros de Itapaci:

Percorrido mais da metade do caminho, o garoto Joãozinho disse para

a mãe que deveriam apressar os passos, porque aconteceria uma

forte tempestade que iria destruir muitas casas. A mãe repreendeu-o

por tão absurdo comentário, pois o tempo estava bom. Ao chegarem

no povoado de Nova Ponte, Joãozinho apontou algumas casas que

iriam cair. Nova Ponte tinha, aproximadamente, 100 casas e cerca de

40 realmente foram destruídas pela tempestade. Joãozinho teria

apanhado da mãe pois, segundo ela, ele tinha virado ‗bruxo‘. Isto foi

no início da década de 1950 (GARCIA, 2013, p.10).

Com 16 anos de idade, como fiscal de um partido político, entrou em discórdia

com um juiz eleitoral e acabou brigando com este. Com poucas condições de trabalho

na cidade e procurando um meio de sobreviver, deixou o lar e ‗ganhou o mundo‘ em

busca de trabalho (GARCIA, 2013). Para Machado (2016), essa atitude de ‗sair de

casa‘ – em 1958, até se estabelecer em Abadiânia, em 1976 – lembra a peregrinação

iniciática de muitos místicos e visionários, um momento de descobrir seu próprio

caminho, ―marcado pela incompreensão, desamparo social e privação econômica‖

(MACHADO, 2016, p.117) que depois, transformado, retorna à sociedade distribuindo

o que vivenciou, à maneira do prisioneiro da caverna de Platão que, escapando e

conhecendo a luz, retorna ao grupo para difundir a novidade. Assim, adolescente,

seguindo sua estrada, procurou ocupação para matar a fome; o médium perambulou

pela região indo parar em Mato Grosso do Sul. Nessas andanças, ao passar por uma

ponte, resolveu tomar banho no rio.

Ao se aproximar da água, viu uma bela mulher32 com quem conversou

multo tempo. No dia seguinte, voltou ao local com o objetivo de

encontrar a mulher. Mas no local que ela estava viu focos de luz e

ouviu a voz dela recomendando que procurasse o Centro Espírita

Cristo Redentor. Orientado pela voz, chegou ao centro, onde era

esperado. Inconscientemente, realizou cerca de 50 cirurgias,

incorporando a Entidade Rei Salomão (GARCIA, 2013, p.20).

Quando João chegou ao centro, o dirigente lhe disse que estavam esperando

por ele e o médium desmaiou. Ao acordar, pensou que a fome o havia feito desfalecer.

andanças, João de Deus se encontrou muitas vezes com o mestre Yokaanam; as conversas ajudaram

João a usar proficuamente sua mediunidade.

32 Com o tempo descobriu-se que era o espírito de Santa

,

Rita de Cássia (CUMMING e LEFFLER,

2008), do qual João de Deus é devoto e igualmente presta culto à Dom Inácio de Loyola.

101

Não acreditou quando as pessoas contaram que ele havia operado várias pessoas

(CUMMING e LEFFLER, 2008). Dirigindo-se à casa do dirigente do centro, foi-lhe

servido uma farta refeição. ―Comeu bastante porque acreditava ter havido um engano

e que logo seria mandado embora‖ (GARCIA, 2013, p.21). Não pediram para partir;

durante dias, após as orações de praxe, João incorporava Entidades que realizavam

as operações. Foi nesse meio tempo que obteve as primeiras orientações espíritas

sobre mediunidade e esclarecimentos sobre dedicação à cura das pessoas. O

médium é inconsciente das operações, ficando com a consciência adormecida.

―Quando estou incorporado, é como se estivesse dormindo. Tinha ciência que fazia

cirurgias, mas não tinha conhecimento preciso do que acontecia. Quando assisti à fita,

com a gravação do procedimento cirúrgico, o choque foi grande‖ (apud GARCIA,

2013, p.37). A partir dessa experiência, o médium João – como passou a ser

chamado, ou João Curador – descobriu sua missão na vida: ―servir a Deus e à

humanidade‖ (CUMMING e LEFFLER, 2008, p.26).

Durante cinco ou seis anos, o médium viajou pelo Brasil. No entanto, não se

sabe ao certo como ia ou chegava em muitos locais. Machado (2016) acredita que

isto se deve não só ao fato de João falar pouco de si e de sua vida privada, mas de

ser influenciado sobremaneira pelas Entidades espirituais, realizando trabalhos por

várias horas e dias. ―Como experimenta tanto o tempo contínuo e progressivo dos

vivos quanto a dimensão atemporal dos espíritos, é difícil para o médium manter uma

memória clara da vida material incerta de João Teixeira de Faria‖ (MACHADO, 2016,

p.115). Este é o pensamento de J. Herculano Pires, estudioso do espiritismo que via

nesse fenômeno mediúnico um alargar dos horizontes da existência física, uma

realidade psíquica presente aqui e além da matéria, onde os médiuns existem numa

espécie de intermúndio, a contatar outras realidades existentes; são os

interexistentes. ―Foram interexistentes os videntes, os profetas de todas as épocas,

os xamãs e pajés das tribos selvagens, os oráculos, as pitonisas, os taumaturgos de

todas as religiões [...], os médiuns [...] os fundadores e propagadores de religiões‖

(PIRES, 1993, p.73). Para esse pensador, na realidade histórica e em nossa

realidade, vários que andam entre nós são interexistentes33.

33 Faz-se notar que Chico Xavier menciona uma importante experiência interexistencial vivida,

relatando que ele mesmo não compreendia muito bem o significado do conceito explicado a ele pelo

próprio J. Herculano Pires. Somente quando viveu uma espécie de bilocação pode compreender. Tal

relato se encontra no livro Chico Xavier: mandato de amor, de Geraldo Lemes Neto.

102

Desde esse início, a inquietação de João de Deus – que em 2018 completou

60 anos de atividades mediúnicas – levou-o a residir em várias cidades e estados

brasileiros:

[...] morou no hoje Estado do Tocantins, mais precisamente nas

cidades de Colinas do Tocantins, Guaraí e Tocantinópolis; na cidade

de Imperatriz do Maranhão e no Estado do Pará, na Vila Rondon,

Belém, Marabá e Tucuruí; em Niterói, Estado do Rio de Janeiro; em

Barreiras, Estado da Bahia; em Brasília, Capital do Brasil e, finalmente

no Estado de Goiás em Campos Belos, Goiânia, Anápolis e, agora,

em Abadiânia. Depois disso já viajou por inúmeros países, a exemplo

do Peru, Portugal, Alemanha, Estados Unidos, Grécia e Nova

Zelândia, sempre levando conforto e curas espirituais aos que lhe

procuram (PÓVOA, 2016, p.30).

Essas cidades são as em que o médium residiu, mas ele confessa que

conhece centenas de cidades brasileiras, tendo passado por todas as capitais do

Brasil. Suas biografias relatam inúmeros casos de curas e situações inusitadas. No

entanto, o estudo será direcionado àquelas que foram basilares na construção da

identidade do médium; e as que podem auxiliar efetivamente os sujeitos de pesquisa

desta tese, ou seja, os[as] Filhos[as] da Casa.

Por não ter subsistido da espiritualidade (GARCIA, 2009), João de Deus

trabalhou de ―alfaiate, barbeiro, candeeiro, cisterneiro, engraxate, garimpeiro, oleiro,

ourives, tintureiro e tantas outras‖ (PÓVOA, 2016, p.31). Mas foi como garimpeiro que

João de Deus angariou condição de vida melhor; hoje ele cria gado em suas fazendas

e tem mineradoras (CUMMING e LEFFLER, 2008). Conta-se que logo no início das

práticas espirituais, um senhor rico se curou com sua ajuda. Procurando João de

Deus, este lhe prometeu dar de presente qualquer coisa que ele quisesse. Na época,

em sua imaturidade espiritual, o médium pediu um carro Dodge Dart vermelho com

bancos brancos. Recebeu o presente dias depois.

No primeiro trabalho que se realizou após o recebimento daquele

carro, a Entidade que nele se incorporara por ocasião da cura daquele

grato paciente, ficou irada e mandou chamar a polícia, determinando

que prendesse o médium, pois o mesmo havia cometido o crime de

apropriação de coisa alheia, pois não fora João de Deus quem havia

curado o homem, mas ela, a Entidade. E fez com que o mesmo

devolvesse o veículo sem ao menos ter sido usado uma única vez se

quer (PÓVOA, 2016, p.28).

Após esse fato, João aumentou sua consciência sobre o mundo espiritual e

sobre a caridade, nunca mais aceitando presentes como forma de pagamento pelas

103

curas espirituais (PÓVOA, 2016; GARCIA, 2013). Porém, em peregrinação pela

Bahia, desempregado e passando necessidade, não hesitou em ganhar algum

dinheiro, fazendo o que sua mãe fazia: ‗lendo a sorte‘. Pego pela polícia, foi levado à

juíza de direito. Ela o desafiou para comprovar se era ou não um charlatão; o médium

―pegou a mão da juíza e disse uma série de coisas que só ela sabia. A juíza, abismada

com o que ouviu, o libertou e determinou que ele sumisse da cidade‖ (GARCIA, 2013,

p.31).

No início dos anos de 1960, em Goiânia, João de Deus conheceu o jornalista

Edson Nunes que era então Presidente da Federação Umbandista de Goiás. Este o

convidou ―para fazer parte da diretoria [...]. Foi na condição de dirigente da Federação

que compareceu a uma audiência com o então governador Mauro Borges,

oportunidade em que pediu apoio aos umbandistas goianos. O apoio foi dado‖

(GARCIA, 2013, p.29). João de Deus guarda boas recordações desse momento

umbandista. Machado (2016) afirma que a prática do banho de cachoeira, que a

Entidade determina para algumas pessoas na Casa de Dom Inácio, adveio do

umbandismo; andar descalço e outros atos também são de origem umbandista.

Ao procurar trabalho em Brasília, João de Deus conseguiu a função de

calceiro para o Exército Brasileiro, graças a um militar que havia sido curado. Ficou

nessa profissão durante muitos anos, viajando e conhecendo o Brasil com os militares.

Em uma manifestação espiritual, ele operou a perna de um médico militar e ―a partir

dali, passou a curar e operar em Brasília, exclusivamente para os militares; durante

um longo período, tornando-se uma espécie de médium ‗cativo‘‖ (PÓVOA, 2016, p.31,

grifo do autor). Cativo em dois aspectos, o de estimado pelas qualidades apreciáveis;

e o de não ser permitido que ele atendesse outras pessoas que não fossem militares

ou autoridades civis. Antes do primeiro golpe, o militar de 1964, o médium conheceu

Juscelino Kubitschek, que o apresentou a outras autoridades as quais passaram a

procurar por João de Deus. Apesar da proteção destas, devido ao fato de se sentir

recluso, preferiu partir e ampliar seus atendimentos. Mas não era só o sentir-se

encarcerado o motivo de sair. Segundo o médium, ―trabalhar fazendo fardas no

exército, em Brasília, foi muito bom, mas era monótono‖ (apud GARCIA, 2013, p.37).

Ainda em busca de emprego, João passa pela Cidade Eclética e reencontra-

se com

,

o mestre Yokaanam. Ali tem inspiração para também possuir um local onde

pudesse reunir pessoas, consideradas irmãs de todas as religiões, com o único

objetivo de vivenciar o bem. Em seguida, João deslocou-se para Palmelo –

104

classificada como a primeira cidade espírita do Brasil, distante a 300 quilômetros de

Brasília, próxima a Caldas Novas/GO – onde acontecia uma festa. Consta-se que

João de Deus e um amigo, igualmente médium, divertiam-se tirando muletas e óculos

das pessoas para que elas pudessem se curar. Jerônimo Candinho, então líder34 de

Palmelo, repreendeu-os bradando que mediunidade não era divertimento (GARCIA,

2013). De acordo com Machado (2016), em Palmelo, o médium João recebe sua

segunda grande instrução espírita, entre outras, não só o porquê de fazer, mas as

causas e efeitos de suas atividades.

Com esses exemplos do umbandismo, do mestre Yokaanam e de Palmelo,

fica evidente que João de Deus inalou experiências de lugares espiritualistas para

construir o que hoje é a Casa de Dom Inácio. No entanto, em conversa informal com

um FC, percebe-se que muitas coisas mudaram desde a sua fundação: ―[...] tudo

muda, não podemos ficar parados. Algumas regras de hoje na Casa não são as de

ontem e, talvez, as de amanhã mudarão igualmente. As pessoas mudam, precisamos

nos adaptar‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 26.01.2018). À vista disso, até meados do ano de

2017, após a intervenção espiritual, duas regras, entre outras, deveriam ser seguidas:

a) era proibido alimentar-se de ovo galado e; b) devia-se tomar três cápsulas de

passiflora por dia, com intervalos de 4 horas entre cada uma. A partir de então, sem

explicação do porquê, a regra do ovo caiu, e as cápsulas diminuíram para duas,

respeitando o mesmo intervalo de tempo.

Na década de 1970, o médium João foi várias vezes para a cidade de

Anápolis, a 180 quilômetros de Brasília, e começou a atender em muitos locais.

Apesar de estar disposto ao trabalho, não era organizado; não havia hora, dia ou local

de atendimento. Com o transpor do tempo, ele passou a atender em três endereços

diferentes de segunda a sexta-feira. Sua fama começou a crescer de boca em boca

e, consequentemente, atraía pessoas favoráveis e desfavoráveis às curas. Não cobrar

pelas curas irritava profissionais, geralmente os médicos, que acionavam a polícia, a

qual passou a odiá-lo igualmente (MACHADO, 2016).

34 Jerônimo Candinho, como mestre educador, religioso e político, é respeitado como ‗Pai de Palmelo‘

(SILVA NETO, 2016). Foi discípulo direto de Eurípedes Barsanulfo e, sob inspiração deste, praticou

curas espirituais que lhe renderam perseguições e acusações de prática ilegal da medicina; foi vereador

por três mandatos e primeiro prefeito de Palmelo. Suas práticas espíritas incluíam a corrente magnética,

uma espécie de produção fluídica espiritual a ser transmita àqueles que sofrem de diversos males. Sob

certa ótica, é possível observar semelhanças com a ‗corrente‘ que João de Deus tem na Casa de Dom

Inácio, como observado. Jerônimo Candinho faleceu em 1981 e suas contribuições para o

fortalecimento de Palmelo foram vultosas.

105

João de Deus estava se tornando inconveniente para diferentes

religiões e para profissionais da medicina convencional. As

hostilidades ampliavam e se tornavam cada vez mais graves. As

garrafadas vendidas pelo médium João passaram a ser combustível

que alimentava a insistência e persistência dos reiterados pedidos de

providências legais contra ele (GARCIA, 2013, p.35).

O médium não gosta de relembrar as prisões e arbitrariedades que

aconteceram, inclusive pelos espancamentos dos quais foi vítima (GARCIA, 2013),

não só porque relembrar é reviver os sofrimentos, mas – em tom resignativo – reitera

o médium – o que tinha que acontecer, aconteceu (GARCIA, 2009). Porém, nem

sempre encarou dessa forma. Em entrevista à Cumming e Leffler (2008), João de

Deus relata, aos prantos: ―Houve ocasiões em que fui preso, mas nunca por latrocínio

ou por qualquer tipo de crime grave. Eu fui preso por transmitir a palavra de Deus‖

(CUMMING e LEFFLER, 2008, p.40). Certa vez, a polícia bateu e o prendeu. Quando

o delegado chegou para o interrogatório, João incorporou uma Entidade e esta

transmitiu todas as dores e sentimentos ao delegado. Desesperado com a dor

cáustica, o delegado entrou em pânico e imediatamente o soltou (DUBEUX e

FRANCISCO, 2017). Houve até tentativa de assassinato contra João:

Em 1981, recebeu um mandado de prisão acusado de prática ilegal da

medicina. A sessão do tribunal foi em Anápolis, distante apenas 20

quilômetros do centro de cura. Felizmente, o seu trabalho era tão

conhecido nas proximidades que um enorme protesto de apoio

público, incluindo advogados beneficiados pelas curas, resultou numa

absolvição. Esta absolvição provocou um intenso rancor numa minoria

comandada por um notório médico de Anápolis e líder político. Em 17

de agosto de 1982, este organizou um grave atentado à vida de

João, com quatro homens que ocupavam três automóveis. Ele ter

sobrevivido, foi considerado um verdadeiro milagre (PELLEGRINO-

ESTRICH, s/d, p.51).

Muitos médicos ficavam irritados com João de Deus, pois achavam que ele

praticava ‗medicina clandestina‘, ainda que em suas falas João repetisse – e até hoje

reitera: ―Nunca devemos abandonar os tratamentos médicos convencionais, uma vez

que esses profissionais são, também, instrumentos utilizados por Deus para

procederem a cura de todos nós [...]‖ (apud PÓVOA, 2016, p.43), ou ―de forma alguma

é recomendado suspender a medicação prescrita pelos médicos‖ (NICACIO e LOES,

2012, s/p.). Mesmo com a presença de médicos protegendo João de Deus, este não

escapou das perseguições. Os relatos de alguns ‗casacas branca‘, no entanto,

contribuíram com um encalço mais ameno. O médico e professor da Universidade de

106

Brasília (UNB), Ícaro Batista, que foi curado de um câncer avançado na próstata,

testemunhou: ―Posso afirmar que se não fosse o tratamento espiritual não estaria

novinho em folha‖ (NICACIO e LOES, 2012, s/p.).

Apesar de toda a perseguição e violência sofridas, seu pensamento

desenvolveu-se em direção a uma flexibilidade da culpa, pois em entrevista recente

ao programa de Amaury Júnior, o médium contemporizou: ―Perseguido? Eu acho que

não. Eu tive foi uma escola, nunca fui perseguido. Porque o que me dá apoio é a

justiça, e a justiça é de Deus‖ (PROGRAMA, 2018, s/p). Essa atitude talvez se

assemelha a de Zé Arigó que depois de ser humilhado pelas autoridades

eclesiásticas, ter sua da caixa d‘água residencial envenenada, ser encarcerado –

apesar do delegado se recusar a isso – padecer desprezo social insuflado por padres,

ter penado pelos boicotes àqueles que amava, incluindo sua mãe, amigos e

colaboradores, disse sorrindo, no final da vida, que o que ele passou não chega aos

pés do que Jesus suportou em seus últimos dias (FULLER, 1974). Provavelmente,

ambos, Zé Arigó e João de Deus, com o aprofundar de vossas espiritualidades,

comprovando a capacidade da perfectibilidade humana, minimizam seus

padecimentos e maximizam a grandiosidade da mensagem cristã, principalmente a

vivência da indulgência e o amor ao próximo.

No entanto, Garcia (2013) aponta que, apesar de João de Deus ter se

estabelecido em Abadiânia e as arbitrariedades terem acabado e não havendo mais

pedidos de providências de instituições médicas e religiosas, persistem perseguições

esporádicas de policiais, do Ministério Público e do judiciário: certa vez um ex-

delegado de polícia foi morto e o sobrinho do médium foi acusado; ―o fato repercutiu

na comunidade e, de alguma forma, atingiu a Casa de Dom Inácio, acarretando sérios

problemas para o médium João‖ (GARCIA, 2013, p.60); por ter atividades no garimpo,

certa feita João foi pago para transportar minério cassiterita da Bahia para Brasília,

contudo, no caminho foi parado e acusado de contrabando;

,

ele foi preso e processado

criminalmente. Na primeira década desse século, dois casos chamaram atenção: a)

uma francesa, abastada e com problemas mentais foi encontrada num matagal da

cidade, vítima de latrocínio. O médium foi acusado como suspeito de envolvimento no

crime; b) um dançarino norte-americano, com AIDS e em estágio final de vida, veio se

tratar com João de Deus. Apesar de declarar que se sentia bem psicologicamente,

como nunca havia se sentido, não demorou para a doença agravar e ele ser

107

encaminhado para diversos hospitais da região, onde veio falecer35. ―Por

determinação da representante do Ministério Público, o médium João foi indiciado em

inquérito policial por homicídio doloso‖ (GARCIA, 2013, p.131).

Entretanto, apesar de João de Deus alegar aprendizagem com a escola de

arbitrariedades e caciquismos, Garcia (2013) reconhece que o médium ainda tem

certa apreensão e receio quando o tema é justiça ou polícia. Por outro lado, muito de

sua tranquilidade e confiança na justiça advém do fato de que inúmeros médicos,

autoridades religiosas, Ministros de Estado, juízes, promotores e advogados já

receberam tratamento na Casa e, muitos deles, até hoje a frequentarem, fornecendo-

lhe uma rede de proteção. ―Atualmente, para evitar transtornos nos atendimentos fora

de Abadiânia, João é acompanhado de advogados, exige uma liminar de Habeas

Corpus e solicita autorização do seu mentor espiritual, se for positivo, aceita o convite‖

(SAVARIS, 2013, p.33).

Na década de 1990, com problemas acontecendo em Abadiânia, os quais o

deixavam angustiado, o médium procurou Chico Xavier. Este lhe entregou um bilhete

que demoveu João do intento: ―Prezado João, caro amigo, Abadiânia é o abençoado

recinto de sua iluminada missão e de sua paz. Chico Xavier. Uberaba, 12.09.93‖ (apud

GARCIA, 2013, p.62).

Este capítulo da tese já se encontrava redigido quando, no início de dezembro

de 2018, o médium João de Deus fora acusado de abuso sexual, durante os

atendimentos individuais, por algumas mulheres. As acusações foram divulgadas

primeiramente por meio de um programa televisivo de grande audiência e tiveram

repercussão impactante devido à fama mundial do médium, e por ele ter tratado várias

pessoas influentes na sociedade, inclusive políticos famosos e renomados artistas.

Mulheres estrangeiras e brasileiras [estas não se identificaram, por vergonha e medo]

apareceram no programa relatando cenas sexuais arquitetadas pelo médium em troca

de cura. Uma mulher, atualmente advogada, veio a público afirmar que em 2008, com

dezesseis anos, foi se tratar de síndrome do pânico com o médium e sofreu abuso

sexual; na época, ela abriu uma ocorrência contra João de Deus, denunciando-o à

justiça, mas o médium foi considerado inocente por falta de provas. Além disso, uma

35 Em conversa informal com um FC, o mesmo declarou que se recomenda, em casos de doentes em

estágio terminal, não os trazer ao médium, para evitar problemas legais (DIÁRIO DE CAMPO,

07.06.2018).

108

das filhas do médium o acusou de estupro continuado e atualmente pede indenização

de R$ 50 milhões na justiça.

Segundo duas outras mulheres, que disseram ter sido molestadas e

abusadas, o médium controlava-as com possível ‗retaliação espiritual‘:

Ele dizia: 'Se você não fizer o que eu estou falando, a sua doença vai voltar',

disse uma das brasileiras, que não quis se identificar.

‗Tinha muito medo deles mandarem espíritos ruins, da minha vida se tornar

miserável, de não conseguir dormir‘, afirmou a holandesa Zahira Mous (apud

CARVALHO, 2018, s/p).

Após essas sérias acusações, as quais incidiram na fé das vítimas, dos FC,

dos frequentadores e dos que direta ou indiretamente foram beneficiados com o

trabalho do médium, outro sobressalto assomou às semanas seguintes: mais de

trezentas mulheres, brasileiras e estrangeiras, procuraram o Ministério Público de

Goiás, informando os abusos praticados por João de Deus. Esse órgão, no intuito de

apurar as denúncias, instituiu uma força tarefa composta por juristas e psicólogos.

Nesse ínterim, João de Deus recebeu voz de prisão preventiva e no momento atual

[janeiro de 2019] encontra-se detido no Núcleo de Custódia em Aparecida de

Goiânia36. Como defesa, o médium nega os abusos. Seus advogados requereram dois

habeas corpus, os quais foram negados; um pelo Tribunal de Justiça e o outro pelo

Superior Tribunal de Justiça.

Na prisão, João de Deus passou mal com tonturas e sangramentos, por ser

cardiopata e devido a isso ele foi levado a um hospital em Goiânia. Dias Toffoli,

presidente do Supremo Tribunal Federal, solicitou que a Justiça de Abadiânia

informasse dados sobre a saúde do médium João Teixeira de Faria além de outras

comunicações relavantes ao processo. O médium passou a ser investigado por posse

ilegal de arma, estupro, estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude.

Posteriormente a esses acontecimentos, muitas notícias e informações

vieram à tona por meio de veiculação midiática: a vigilância sanitária do Estado de

Goiás fechou o laboratório da Casa sob alegação de ali se produzir remédios em

escala industrial; em torno da Casa, muitos comércios demitiram funcionários e

36 No presente mês de abril de 2019, o médium se encontra internado no Hospital de Neurologia de

Goiânia para tratamento de aneurisma na região abdominal. O Ministério Público Federal [MPF] quer que

João de Deus volte à prisão, porém, o colegiado do Superior Tribunal de Justiça [STJ] negou o pedido alegando

que o médium tem direito ao tratamento especializado de sua saúde (MEIO NORTE, 2019, s/p).

http://g1.globo.com/go/goias/cidade/aparecida-de-goiania.html

http://g1.globo.com/go/goias/cidade/aparecida-de-goiania.html

https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/19/stj-nega-pedido-de-habeas-corpus-do-medium-joao-de-deus.ghtml

109

algumas pousadas fecharam; a Casa passou a receber apenas 20% de

frequentadores; foram descobertos na residência do médium seis armas – sendo uma

com numeração raspada e outra de uso restrito à polícia [esse episódio fez com que

João de Deus recebesse condenação de prisão domiciliar], um montante no valor de

um milhão e seiscentos mil reais [segundo o Ministério Público, esse dinheiro pode

ser indício de ocultação de patrimônio ou lavagem de dinheiro], pedras preciosas e

uma significativa quantia em dólares e euros. Além disso, foi divulgado que o médium

e sua esposa possuem mais de 80 imóveis, registrados em seus próprios nomes; ela,

por sua vez, poderá ser criminalizada como coautora de posse ilegal de armas e por

lavagem de dinheiro. Ademais, um juiz de Brasília imputou o médium de liderar

quadrilha em Abadiânia (FOLHAPRESS BRASIL, 2018; LIMA, 2018; YAHOO

NOTÍCIAS, 2018; FOLHAPRESS, 2018).

No primeiro depoimento dado por João de Deus, alguns fatos surpreenderam

os presentes. Foram ocorrências consideradas como ‗sustos das coisas do além‘:

houve um curto-circuito, falha no computador e um policial foi atropelado. Nesse

depoimento, o médium negou as acusações, afirmou não se lembrar das mulheres

que o acusam e que ele recebeu ameaças pelo celular; dentre estas, algumas

delataram que passaram a sofrer linchamento virtual. Por conseguinte, o Tribunal de

Justiça ordenou o bloqueio de R$ 50 milhões das contas de João de Deus para

possível indenização às vítimas. Sobre tudo o que vem acontecendo em torno de João

de Deus e consequentemente de Abadiânia, alguns moradores preferem o silêncio

pelo medo de represálias do médium; uma editora suspendeu a distribuição de um

livro sobre João de Deus; e a Federação Espírita Brasileira – FEB – publicitou que o

médium não faz parte do espiritismo.

Diante dos fatos explicitados e denunciados contra o médium, muitos não são

inéditos, pois João de Deus já respondia na justiça por mais quatro inquéritos sobre

abuso sexual, dois em 2016 e dois em 2018. Uma

,

promotora alertou que as acusações

são mais graves que as do ex-médico Roger Abdelmassih, pois o médium além de ter

abusado sexualmente de adultos, entre eles pessoas famosas, molestou crianças e

adolescentes. Algumas pessoas célebres, após as denúncias, apareceram na mídia

pedindo desculpas por ter recomendado os trabalhos mediúnicos de João de Deus.

Uma delas asseverou que o médium é apenas João, sem Deus. O Ministério Público

suspeita que alguns funcionários da Casa foram cúmplices nos abusos.

110

No final de dezembro de 2018, houve conclusão do inquérito da Polícia Civil

de Goiás e João de Deus foi indiciado ―sob a suspeita de violência sexual mediante

fraude. O relatório final do inquérito diz que ele cometeu uma espécie de estelionato,

ou seja, propôs um tratamento de cura espiritual com o intuito de cometer uma

violação‖ (FOLHAPRESS, 2018, s/p). Além disso, está sendo divulgada a existência

do modus operandi do médium, o qual se organiza em propor à pessoa atendimento

especial e individualizado, levá-la para uma sala particular, trancar a porta, falar que

vai curá-la ou alinhar seus chacras, apagar as luzes, virá-la de costas, passar a mão

pelo seu corpo – iniciando o abuso – mormente nas partes íntimas e ‗trocar a cura‘ –

seja induzindo a vítima a manipular seu pênis, propor sexo oral ou até mesmo penetrá-

la – após isso, presenteá-la com um quadro ou pedra preciosa e solicitar que não

comente com ninguém.

Em um desses relatos, uma das abusadas revelou que, após o ato libidinoso,

‗ganhou o status de filha da casa‘: ―Ele falou: 'A partir de agora você é filha da casa'.

Ele me falou para escolher um dos cristais que tinha na prateleira e que aquele cristal

seria a conexão dele comigo. A única forma de se provar que eu estive lá é o cristal‖,

e após perceber que não estava sozinha, ganhou força para denunciar o médium:

―Quem é que acreditaria em uma pessoa simples como eu, quem é que iria acreditar

na minha história? Agora nós temos força. Agora nós não somos só uma. Nós somos

várias‖ (apud LIMA, 2018, s/p).

Diante dessas acusações e fatos, João Teixeira de Faria passa por descrédito

não só de sua pessoa, mas de seu trabalho espiritual. Muitos doentes lamentam tal

situação; uma família vinda da Euro-Ásia começa a considerar o médium como um

embusteiro:

‗Até então, tudo estava indo bem. Mas quando vimos as notícias na

TV, ficamos pensando: e se ele for um charlatão?‘, diz Demir Ali Selen,

28, que veio da Turquia junto com os tios em busca de tratamento para

o sobrinho, de três anos, diagnosticado com câncer no cérebro. ‗É

difícil ouvir sobre isso sabendo que levamos mais de 24h só para

chegar até aqui‘ (apud FOLHAPRESS BRASIL, 2018, s/p).

No entanto, ao considerar a força religiosa vista anteriormente, isto é, de como

a religião produz valores morais e identitários, as realidades veiculadas, dependendo

a fonte – se sagradas ou profanas – são entendidas comumente como simples ou

ilusórias. As motivações que Geertz (1989) comunica são agora exemplificadas na

prática, não somente pelos religiosos simpatizantes a João de Deus, mas também

111

pelos antagonistas a ele, ou pelos ateus que praguejam. Normalmente, nessas

ocasiões, cada pessoa concebe a realidade e a compreende de acordo com seu

universo simbólico-social, tentando demonstrar certa aura de fatualidade em suas

crenças. Isto não desmerece as verossímeis acusações que devem ser apuradas e,

se comprovadas, dever-se-á executar sentença ao réu, de acordo com a lei. Além

disso, nesse contexto, ou seja, diante dos ‗fatos‘, é comum se utilizar de estruturas

simbólicas sagradas para culpabilizar ou inocentar uma pessoa, seja ela vítima ou ré.

Desta forma, a última frase dita na Casa pelo médium João, antes de ser

preso: ―Agradeço a Deus por estar aqui. Ainda sou irmão de Deus. Quero cumprir a

lei brasileira. Estou nas mãos da lei. João de Deus ainda está vivo‖ (YAHOO

NOTÍCIAS, 2018, s/p) apresenta símbolos linguísticos que podem ser compreendidos

de acordo com a capacidade interpretativa de cada pessoa. Enquanto alguns

enxergam-na como uma confissão de mea culpa, outros veem-na como um pedido de

socorro à justiça; há ainda alguns que a concebem como um simples discurso de

coragem e resignação diante da provação.

Consequentemente, iniciou certa desconfiança acerca de determinados

acontecimentos expressos por alguns biógrafos próximos ao médium, como Garcia

(2013 e 2009) e Cumming e Leffler (2008). Garcia (2013), advogado particular de João

de Deus, à época da escrita de seu de seu livro, omitiu ações judiciais contra o médium

sobre incriminações sexuais. Vale ressaltar que esse autor frisou o medo que o

médium tinha da polícia ou da justiça e de como deixou de ser, sobremaneira,

perseguido ao longo da história ao ganhar proteção de muitos advogados, juízes,

ministros de estado, médicos e outros. Cumming e Leffler (2008) – FC há 19 anos –

parece desmerecer aspectos autoritários do médium, retratando-o como ‗pessoa

normal‘, igual a outra pessoa, mas com mediunidade de cura ímpar. Essa autora cita

o médium gabando-se de que ele sempre foi preso por levar a palavra de Deus, não

por ter cometido um crime grave. Tal frase possivelmente justifique o assombro maior

das pessoas religiosas, ou seja, o fato de que por princípios ‗sagrados‘ não se deve

machucar mulheres ou outras pessoas quaisquer, independente do gênero, etnia ou

idade; o problema se agrava por se tratar de uma autoridade religiosa que a pratica

ou tem uma relação hierárquica maior sobre outrem. Por conseguinte, provavelmente,

seja esse o motivo do ‗silêncio envergonhado‘ de alguns FC, como será possível

observar.

112

Para a questão-problema da tese em si – ‗quais os significados e sentidos

para os FC sobre as intervenções espirituais realizadas por João de Deus?‘ –

compreende-se que pouco se modificou com as acusações imputadas ao médium.

Acredita-se, que as respostas dos FC sobre João de Deus poderiam ser diferentes,

com outros detalhes ou compreensões, como mostrará o próximo item. Mas como

todo acontecimento histórico tende a modificar as concepções ao longo do tempo,

pesquisas futuras poderão trazer novos discernimentos dos FC sobre o ocorrido – se

ainda estes existirem – pois a pesquisa etnográfica foi anterior a todo esse ocorrido

de denúncias contra o médium.

Depois de mostrar um pouco da trajetória do médium, faz-se necessário

entender como é João Teixeira de Faria no trato com as pessoas, ou seja, o homem

por trás do médium João de Deus, de acordo com seus biógrafos, e também na

perspectiva dos[as] Filhos[as] da Casa. É necessário compreender moderadamente

sua personalidade e o que ele representa para esses[as] Filhos[as] da Casa.

1.6.1 João de Deus aos olhos dos(as) Filhos(as) da Casa

João era considerado uma espécie de guru da Nova Era, um médium que

constantemente se encontrava sob os holofotes da mídia nacional e internacional,

principalmente quando atendia pessoas famosas ou era entrevistado por jornalistas

de renome. Muitos profissionais da comunicação chamavam o médium de lendário,

célebre e outros nomes que recordam certa aura de magnanimidade. Suas atividades

em grandes centros do mundo, como Nova York, Alemanha, Suíça, Peru, Grécia,

Portugal e outros, projetaram-no para além das fronteiras de Abadiânia, Goiás e

Brasil. Para quem o via pela primeira vez, nos finais de semana, e esperava encontrar

uma pessoa humilde nas vestimentas e desapegado nas ostentações, assim como

Chico Xavier, enganava-se. João é vaidoso, exibia sua grossa corrente de ouro no

pescoço, anel de esmeralda e um de seus carros luxuosos, quando saia pela cidade.

Mas nos trabalhos na Casa ele era mais discreto. Contudo, seu itinerário da pobreza

à fama mundial pouco importava àqueles que sofriam, então desenganados pela

medicina em busca da cura. O próprio médium tem convicção

,

de que ―bens materiais

são necessários para viver com dignidade, a fim de evitar depender de outras

pessoas, mas não são mais importantes que o patrimônio espiritual‖ (apud GARCIA,

2013, p.147).

113

Mesmo sendo uma pessoa famosa, não raras vezes, o médium chamava

atenção para não ser endeusado. ―Desincorporado, sou uma pessoa normal, com

virtudes e defeitos, mais defeitos do que virtudes‖ (apud GARCIA, 2013, p.144).

Devido à fama, era difícil vê-lo em eventos sociais, shoppings, restaurantes ou lugares

de grande aglomeração. ―Sua vida se resume aos atendimentos às pessoas que o

procuram, às atividades como fazendeiro [...] e à residência. Por ser publicamente

reconhecido, teve que renunciar à vida social‖ (GARCIA, 2013, p.156).

Quando era dia de atendimento na Casa, normalmente vestido com roupas

brancas simples, o médium não ostentava luxo, a não ser seu anel. E quando subia

ao palco da Casa, não estando incorporado, repetia esse discurso, no todo ou em

partes:

Em 1978, instalei a Casa de Dom Inácio neste solo sagrado de

Abadiânia, esta terra bendita, onde Deus me colocou para cumprir

minha missão. Eu não curo ninguém. Quem cura é Deus, que em sua

infinita bondade, permite às Entidades que me assistem proporcionar

cura e consolo aos meus irmãos. Eu sou apenas um instrumento em

Suas divinas mãos. Fui garimpeiro e aprendi que a pedra preciosa,

para mostrar sua verdadeira beleza, precisa sofrer o desgaste da

lapidação. Assim é cada filho, raro diamante da criação, que necessita

ser lapidado para realizar sua superior destinação. O mundo passa por

grandes transformações, gerando consequentemente grandes

sofrimentos, porém, a nossa força e sustentação devem residir na

confiança no Ser supremo, que é nosso Deus. Para finalizar, deixo

como mensagem as palavras do Cristo no Evangelho de João [15, 12]:

‗o meu mandamento é este: que vos amai uns aos outros, como Eu

vos amei‘ (apud SAVARIS, 2013, p.31).

Como pessoa, aos olhos de quem estava próximo a João, ele era facilmente

diferenciado de quando estava incorporado. ―Incorporado, atende a todos com energia

e paciência infatigáveis. Desincorporado, pode ser personalista, exigente e, às vezes,

errático‖ (MACHADO, 2016, p.184). Para Savaris (2013), João possui várias

qualidades como serenidade, discrição e amabilidade, mas também tem seu lado

imperfeito, pois apresenta características tais quais impaciência, agressividade,

aspereza e centralização. Em relação a esta última, ela pode ser sua maior

particularidade, pois todos os taxistas que atendem os estrangeiros da Casa e os

donos das pousadas próximas a mesma são impelidos por João a cobrarem preços

justos pelos serviços.

Antes de evidenciar os relatos dos[as] Filhos[as] da Casa pelo médium João

de Deus, é interessante apresentar uma história para, quem sabe, adentrar o leitor

114

numa espécie de atmosfera de saúde-doença-cura na Casa; um clima psíquico que,

para quem passa pelo sofrimento, sabe o preço e a grandiosidade de, simplesmente,

‗estar bem‘, em paz, feliz, sem dor ou angústia. Desta forma, espera-se contemplar

João de Deus aos olhos dos[as] Filhos[as] da Casa.

Melinda Holland, Psicóloga, Austrália Ocidental - Austrália.

“Eu não podia fazer nada além de existir. Não queria viver uma

vida com tanta dor. A Entidade disse: Tu serás curada, mas levará

tempo”

Machuquei minhas costas em um acidente em uma mina de ouro

na Austrália quando eu tinha 21 anos de idade. O trabalho era braçal,

com levantamento e abaixamento. Não percebia que podia me causar

tantos danos. O professor de engenharia da minha irmã calculou a

força sustentada pelas minhas costas, concluindo ser inevitável que

eu me machucasse. Na minha pressa para melhorar, eu fui a um

quiropraxista que lesou minhas costas quatro vezes e, depois disso,

não pude me mexer durante dois anos. Eu mal conseguia caminhar.

Para realizar uma atividade simples, como abrir uma janela, eu teria

que deitar no chão por quatro horas para me recuperar. Morava na

beira da praia de Scarborough. E não podia caminhar os cinco minutos

necessários para chegar até lá. Se eu tentasse, teria que voltar. Fui a

todos os tipos de especialistas, e nenhum deles sabia me dizer porque

eu tinha tanta dor. A dor era parecida com uma corrente elétrica.

A mineradora não possuía seguro para compensar os

trabalhadores. Era jovem e não tinha educação, não tinha uma

carreira. Sentia que minha vida tinha acabado. A dor era tão intensa

que costumava chorar todos os dias. Eu estava desesperada por sentir

dor, então me enviei em uma missão em busca da minha cura. Sentia

que se não encontrasse a cura, eu pularia de uma ponte e me mataria.

Não queria viver uma vida com tanta dor. Também me sentia torturada,

desejava nunca ter ido ao quiropraxista. Eu não podia fazer nada além

de existir. Não podia sentar, deitar ou caminhar. Todas as partes do

meu corpo doíam. Então comecei a experimentar terapias alternativas

e viajei para diversos lugares na Austrália. Experimentei kinesiologia

e consertei um disco machucado na coluna, o que me fez uma grande

diferença, mas eu ainda tinha as dores elétricas. Minha busca me

levou a caminhos mais espirituais e descobri o Chi Kung chinês,

pratiquei por dois anos sem resultado. A meditação era como a

corrente na Casa. Eu também comecei a cursar Psicologia para

compensar o fato de eu não ter completado os meus estudos.

Meu namorado na época era um psiquiatra, assinava revistas

alternativas. Um dia, ele recebeu uma revista que continha um artigo

sobre um curandeiro no Brasil. Ao ler, soube que eu precisava ir ao

Brasil e isso era tudo em que eu podia pensar. Minha primeira viagem

ao Brasil durou apenas uma semana. Eu sabia que precisava voltar e

passar mais tempo. Então, em 1998, passei muitos meses em

Abadiânia e determinei de que essa era a minha chance. Eu estava

disposta a fazer dar certo. Finalmente, eu achei alguém para ser meu

115

intérprete e escutei da Entidade que havia encontrado o lugar certo.

Ela viu que eu havia ido a todos os lugares e tentado tudo. Falou que

eu me curaria mas que levaria tempo e que eu precisaria participar da

corrente.

No começo, eu não entendia a Casa. Era muito difícil naquela

época, sem um guia ou tradutor para estrangeiros. O primeiro tradutor

de inglês foi uma benção. Eu perguntava constantemente para a

Entidade sobre a minha dor, e ela apenas dizia para eu participar da

corrente. E assim eu fazia. Dava o meu melhor, mas eu não conseguia

sentar corretamente, então tinha que pedir permissão para deitar no

chão. Eu usava um fino colchonete de acampar. Quatro anos na

corrente dos médiuns, onde chorei muito para me purificar. É verdade

que a corrente limpa seus problemas. Eu sentia a energia da corrente

entrando pela minha cabeça descendo pelo meu corpo até sair pelos

meus pés. Um dia, eu tive minha primeira grande cura. Eu estava

deitada no chão e não podia me mexer; estava chorando. Um dos

funcionários da Casa teve de me carregar até a Entidade, que disse

que eu estava recebendo trabalhos especiais. Decidi que, se depois

de quatro anos eu não obtivesse resultados, eu não voltaria mais.

Então a Entidade me colocou para trabalhar na corrente das

Entidades. Eu tive muitos resultados no quinto e sexto ano. A Entidade

disse que eu precisava da dor para progredir espiritualmente. Eu

enxergo isso hoje. Como resultado, eu sou mais determinada, tenho

mais força interior e de caráter, e sou mais persistente do que outras

pessoas.

Eu tentava resolver problemas com meu namorado, que não

gostava do fato de eu passar tanto tempo no Brasil. Decidi que

retornaria para o Brasil e tentaria buscar a minha cura, e que meu

relacionamento teria que acabar. Voltei para o Brasil, passando muito

tempo na corrente. Até que a Entidade Xavier disse que, para eu

conseguir o resto da minha cura, eu deveria trabalhar na casa e me

designou para a enfermaria. Fiquei

,

bastante assustada, mas acabei

gostando muito do trabalho, como assistente. Eu me sentia muito bem

em ajudar as pessoas. Era uma boa experiência ver a Casa por outra

perspectiva; você conhece pessoas que estão em uma situação pior

que a sua. Trabalhei na enfermaria três meses e descobri que era uma

das Filhas da Casa. Além disso, minha relação com minha mãe

também melhorou. Antes, nós vivíamos em conflito. Isso me permitiu

voltar para casa e continuar os estudos. Eu tentei descobrir o que

queria estudar na faculdade. Sentia como se tivesse perdido a minha

identidade por algum tempo. Meu namorado era médico e mais velho

que eu, tinha mais poder e tentava controlar tudo o que eu fazia.

Quando pude me libertar dessas amarras do relacionamento, decidi

voltar para a Psicologia e terminar Pedagogia que estava cursando. A

Entidade, no dia da minha partida, era novamente Xavier. Em meu

coração, eu não queria ir embora, mas eu sentia a pressão para

colocar minha vida em ordem. Xavier gritou comigo, agora a casa

inteira sabia o que ele havia me dito. Ele disse: ―eu te dei emprego,

você não deveria ir embora, deveria ficar‖ apontando para a

enfermaria. Ele estava bravo, e eu fiquei ainda mais confusa.

Na Austrália, eu já era capaz de subir uma montanha e assim o

fiz. Uma semana depois, fui admitida na universidade de Swinburne,

em Melbourne, para cursar Psicologia. A Swinburne é uma das

melhores na Austrália para esse curso. Nessa época, quebrei meu pé,

tive uma grande crise de depressão. Eu não estava preparada para

116

outro acidente envolvendo tanta dor. Já formada em Pedagogia, eu

iniciei Psicologia, mas minha condição mental só piorava. Precisei de

ajuda da medicina tradicional para lidar com a depressão e com os

abusos do meu ex. Escrever minha tese foi muito difícil, mas todas as

noites eu escrevia bilhetes às Entidades, que me ajudavam com as

seções que eu ia escrevendo, adicionando tópicos que envolviam a

neurociência. Foi a coisa mais difícil que eu já fiz, intelectualmente

falando. Eu pensava sempre no que Xavier havia me dito e, mesmo

assim, passei muito tempo na Austrália.

Rumo à minha terceira viagem, Xavier disse que me arrumaria

trabalho novamente, mas eu não estava preparada. Precisava me

curar da depressão. Quando retornei, em 2004, a Entidade me

mandou apenas para a cachoeira por quatro meses. Após esse tempo,

fui mandada para a corrente, e os problemas com meu ex e com minha

vida passada foram resolvidos e deixados para trás. Eu passei a

respeitar a cachoeira após esse intenso trabalho. Então, senti-me

pronta para terminar a missão que Xavier me deu. Voltei à Entidade e

pedi por Xavier, ele estava presente e me mandou para a sala dos

médiuns para que eu me purificasse. Passei uma semana lá dentro.

No dia 25, Natal, pedi por Xavier, e ele disse que era ele mesmo.

Perguntei onde deveria ir para trabalhar. Ele disse: ―Vá onde você

quiser‖. Mas eu queria uma resposta concreta e, dessa vez Heather

conseguiu uma vaga dando informações a grupos de pessoas. As

informações são dadas na fila após intervenções cirúrgicas ou

espirituais. Eu ajudo o time brasileiro e estrangeiro, dando direções

para as filas que saem da consulta com a Entidade. Eventualmente

ajudo pessoas respondendo dúvidas, às vezes preciso encontrar

alguém que fale certo idioma para que uma pessoa seja atendida. Eu

gosto muito do trabalho. E, em troca, tem me ajudado a me libertar do

resto da dor que tenho em meu corpo, mandando-a embora pelas

minhas pernas, pouco a pouco. Hoje, posso andar de bicicleta todos

os dias, ficar de pé por longas horas e caminhar normalmente. Um dia,

espero completar a minha cura e, neste meio tempo, estou ajudando

a Casa. Milhares de brasileiros e estrangeiros vêm aqui. O mundo vem

aqui. Eu sou abençoada por ter conhecido tanta gente e testemunhado

tantas curas. É um hospital especial, onde você se liberta de dores do

passado, mas também uma escola espiritual, onde você aprende a

mediunidade e habilidades psíquicas para ajudar outras pessoas. Eu

aprendi a me libertar de amarras e mandá-las embora, a enviar

mensagens a amigos e familiares de pessoas que faleceram

recentemente. Isso ajuda os que foram deixados para trás. Também é

importante aprender como salvar outras pessoas, como demonstra os

ensinamentos jesuítas de Dom Inácio. Eu me sinto muito mais feliz e

em paz. Sinto que encontrei o que procurei durante minha vida inteira.

Hoje tenho 46 anos (apud XAVIER, 2017, p.183-190, grifo da autora).

Ao ler o relato de Melinda Holland, muitas situações são significativas,

ocorridas antes dela chegar à Casa: não somente suas dores e problemas nas costas,

mas sua angústia com a mãe; culpa pelo que fez o quiropraxista; constrangimento

pela falta de estudo universitário; aviltamento em só existir como um vegetal; conflito

e resistência ao suicídio; firme decisão de buscar cura alternativa já que a medicina

117

oficial não resolvia e; problemas com o namorado possessivo. Após sua chegada, a

cura viria com mais tempo; chorando, se purificou na corrente da Casa; descobriu

sentido existencial na dor como progresso espiritual e mental; libertou-se das

‗amarras‘ do ex-namorado e do passado; aceitou a condição de cura com o trabalho

voluntário; conheceu doentes em situação pior; melhorou o contexto com a mãe e

‗voltou para os estudos‘; subiu montanha; foi enviada à cachoeira e, por causa disso,

começou a respeitá-la; em troca do trabalho na Casa se libertou da dor; pôde caminhar

normalmente, andar de bicicleta e mover-se por longas horas; conheceu muitas

pessoas e testemunhou inúmeras curas; passou a conceber a Casa como um hospital

especial e uma escola espiritual; libertou-se das dores do corpo e do espírito,

aprendeu mediunidade e habilidades psíquicas; envia mensagens dos ‗falecidos‘ aos

deixados para trás e; procura, a exemplo dos ensinamentos de Dom Inácio, salvar

outras pessoas.

Depois desse processo de dor à cura, da tristeza profunda à felicidade, caso

fosse perguntado à Melinda o que ela pensa de João de Deus, o que representa o

médium em sua vida, possivelmente sua resposta seria a mais enaltecida possível.

Talvez, para seus familiares e amigos próximos a conclusão não seria diferente.

Assim, entendendo que as respostas dos FC proporcionam e denotam um imaginário

abundante de adjetivos enaltecedores, tem-se claramente uma valorização profícua

sobre João de Deus. Classificá-lo como luz, amigo ou guia parece ser a ponta do

iceberg, pelo menos para os religiosos simpatizantes.

Assim sendo, serão explorados alguns relatos dos[as] Filhos[as] da Casa

sobre o médium. Antes, ter-se-á como base uma frase de Melinda: ―eu sou abençoada

por ter conhecido tanta gente e testemunhado tantas curas‖, pois os[as] Filhos[as] da

Casa entrevistados vivem isso cotidianamente, relacionam-se com muitas pessoas e

testificam várias recuperações, inclusive as próprias, como poder-se-á notar. Quando

perguntado a estes o que representa João de Deus, as respostas são variadas como

devem ser, mas todas possuem um denominador comum: que ele representa

inúmeras virtudes entre os humanos.

O procedimento arquitetado nessa tese para analisar os depoimentos dos FC

separará as explicações segundo as categorias apontadas por Lakatos e Marconi

(2003), quais sejam: validade, relevância, especificidade e clareza, profundidade

118

[incluindo a intensidade emocional] e extensão37, e em outros parâmetros como

regularidade e discrepância. No entanto, foram encontradas algumas dificuldades,

visto que cada uma das respostas dos FC apresenta caminhos de pensamento e

simbologia diversos. Assim, sem o objetivo de forçar ajuntamentos, optou-se por

iniciar por uma apresentação de um rápido comentário antes da resposta completa de

cada FC. Na sequência, seguirá um maior detalhamento, salientando, quando

necessário, alguma categoria apontada ou outra surgida diante das respostas.

,

Especificamente, na pergunta sobre a representação de João de Deus, devido à

regularidade de atribuir qualidades morais ao médium e pela ‗força da realidade das

respostas‘ em exigir tal inclusão, com isso se incluiu a categoria a posteriori ‗qualidade

moral‘, apontando as que os próprios FC realçaram sobre o médium. Ao final de todos

os depoimentos, optou-se por fazer uma análise integral, sinalizando convergências e

divergências nas falas dos sujeitos a partir dessas categorias analisadas.

Sendo assim, para o FC1, João de Deus representa esperança de cura mental

e física; a ‗retomada‘ do desenvolvimento íntimo e uma sociedade com menos

problemas.

O senhor João representa a recuperação da esperança que se perde

quando acreditamos que não há mais saída para o nosso problema,

seja de saúde física ou espiritual. Representa a continuidade do meu

processo de evolução para chegar até Deus. Representa um pouco de

luz em uma sociedade tão sombria e instável em todos os aspectos

(FC1).

É relevante frisar que a FC1 passou por uma doença incurável para a

medicina regular [tumor na pineal] e, com poucas esperanças, encontrou em João de

Deus sua extraordinária cura. Para quem estava tristemente se despedindo da vida,

a recuperação significou renascimento. Ela não apenas foi curada; isto não bastou.

37 Por estas categorias, os autores compreendem:

• ―Validade. Comparação com a fonte externa, com a de outro entrevistador, observando as dúvidas,

incertezas e hesitações demonstradas pelo entrevistado.

• Relevância. Importância em relação aos objetivos da pesquisa.

• Especificidade e Clareza. Referência a dados, data, nomes, lugares, quantidade, percentagens,

prazos etc. com objetividade. A clareza dos termos colabora na especificidade.

• Profundidade. Está relacionada com os sentimentos, pensamentos e lembranças do entrevistado,

sua intensidade e intimidade.

• Extensão. Amplitude da resposta‖ (LAKATOS e MARCONI, 2003, p.200-201).

Sobre a categoria ‗validade‘, destaca-se que, além do evidente significado, haverá uma comparação

entre as entrevistas colhidas nesta mesma pesquisa sobre os FC. Isto posto, faz-se saber a

originalidade desta tese, ou seja, não há bibliografias tratando especificamente dos FC, não havendo

assim fonte externa.

119

Essa FC mudou de vida e deu novo sentido existencial, inclusive na compreensão de

que João está seguindo um caminho evolutivo, assim como ela, rumo ao sagrado

maior; João de Deus ―representa a continuidade do meu processo de evolução para

chegar até Deus‖. Sua consideração leva em conta o coletivo da sociedade, quando

percebe que esta vive em sombras e instabilidades políticas, sociais, econômicas e

outras38.

Para a FC1, João de Deus não traduz somente cura, mas transporta novas

significações; significações, acima de tudo, espiritualizadas. As lições do médium não

representam apenas a manifestação de uma hierofania para essa FC; aparentemente,

ela passou a enxergar várias hierofanias no cotidiano com o médium: esperança da

cura em lugar de desengano da medicina; travessia ou ponte para algo melhor e;

atitudes para ajudar muitas pessoas – a clareza do bem ao próximo, que não se

restringe às curas do corpo, mas também mental, a exemplo de luzes-guias – não

merecedoras pelo que estão passando sociopoliticamente em solo brasileiro, aparente

e principalmente, o povo pobre. Assim, acentua-se que essa FC parte de uma visão

individual para uma coletiva, como a desejar expandir os benefícios da espiritualidade.

Sobre as categorias de Lakatos e Marconi (2003), é possível destacar tal

depoimento quanto à ‗relevância‘ – para os objetivos desta tese –, pois a FC1 tem

seus sentidos e significados elevados após a submissão a uma intervenção físico-

espiritual, a qual lhe forneceu qualidade e ‗razão de vida‘, graças ao médium. Sobre a

‗profundidade‘ na intensidade sentimental, ela embargou a voz e ficou em silêncio

comovido, diante da pergunta da representação do médium. Pela categoria ‗extensão‘,

sua lembrança da própria cura e benefício se estendeu para o coletivo social, como a

desejar ampliar os prazeres físicos e mentais que todos podem usufruir. As

‗qualidades morais‘ ressaltadas do médium foram: retorno da esperança, reafirmação

do objetivo de vida e pequena luz na escuridão.

Segundo o FC2, João carrega uma bandeira de amor, de Deus e da cura,

mesmo sendo um humano imperfeito. O médium demonstra humildade e grandeza ao

dar chance de crescimento às pessoas.

38 Sabe-se que crises nacionais são bastante veiculadas pelos Meios de Comunicação de Massa.

Quando adentramos na adolescência, no colégio, os professores diziam que o que atravancava o Brasil

e os brasileiros, impedindo o desenvolvimento social, era a Dívida Externa. Hoje, é falado que o que

estorva é a Dívida Pública e os maus políticos. Sobre estes, dizem que se trata de políticos que não

têm visão comunitária, mas egocêntrica. Desta forma, as ditas instabilidades sombrias parecem

infindáveis. Por mais que os líderes da nação brasileira afirmem priorizar saúde e educação, é fácil

constatar ser isto uma falácia, desde a redemocratização do Brasil, principalmente a partir de 1985.

120

Olha, é uma pessoa que dedicou sua vida a carregar essa bandeira

do amor, de Deus, da cura. É um homem que tem tido uma vida dura,

ele mesmo disse que tá cheio de defeito. Não é uma pessoa num

pedestal assim, mas por outro lado, tem tido reações muito grandes e

ele tem segurado essa bandeira. Uma das coisas mais duras nesse

mundo é sustentar essa bandeira, porque é atacado constantemente,

então ele... ele é um guia, é uma luz nesse sentido e... tem colocado

coisas muito difíceis para enfrentá-las, mas no final sempre tem esse

equilíbrio... Essa visão de dar oportunidade para nós crescermos.

Então, para mim, foi diferente do que eu tinha praticado, a

possibilidade de ver e de trabalhar com a espiritualidade dessa

forma... Mediunidade não era uma coisa que eu conhecia, mas dentro

disso a espiritualidade é verdadeira, então de uma forma ou outra são

maneiras de prática, formas de vida. Agradeço a espiritualidade que

está nos guiando... (FC2)

Nota-se que o FC2 não era principiante na prática espiritualista quando teve

contato com João de Deus, porém a familiaridade direta com o fenômeno mediúnico

foi inusitada. No entanto, pressupõe-se que seus estudos e contatos anteriores o

prepararam para não estranhar tais acontecimentos. Ele próprio verificou ser possível

o impossível pela medicina convencional, ou seja, de onde nada sairia, saiu seu filho.

Esse fato, junto aos outros, alça João de Deus como um guia espiritual, um mestre

que leva seus alunos a experimentarem por si mesmos – à maneira dos pais

contemporâneos da pedagogia, como Dewey e Paulo Freire39 – o desconhecido

mundo espiritual.

Ademais, o FC2 levanta aspectos dos possíveis problemas causados por

patrocinadores de derrotas, amantes da crueldade que trabalham contra o serviço do

médium, visto que este é ―atacado constantemente‖, como afirmado. Para finalizar,

esse aprendiz fala da gratidão por estar sendo guiado pela espiritualidade. Tal frase

pode parecer um pouco exagerada, porém, o FC2 mostra, de seu ponto de vista, que

muitas coisas foram acontecendo em sua vida, como se fossem construídas no

invisível, materializações de novidades pouco esperadas. Essas conquistas

ocorreram com os ensinamentos da espiritualidade, segundo esse FC.

Em relação às categorias de Lakatos e Marconi (2003), sobre o aspecto

‗relevância‘, ressalta-se que o sentido e significado, constituídos após o encontro com

o médium João e a permanência na Casa, tenham-no feito responsável pela tarefa de

39 Ambos autores, John Dewey e Paulo Freire, cada um a seu modo, construíram suas pedagogias

para que os alunos experimentassem na prática social aquilo que aprendiam. O primeiro tinha uma

postura mais cientificista, o segundo

,

e punido. A ética humana ou a

ética cristã, não devem servir de mera formalidade, de aparência imaculada,

acobertando atitudes indecentes e libertinas. Aquele que age assim, tratando de

saúde e religião – valores robustos em nossa sociedade – não apenas quebra uma

regra social, mas a desestabiliza em sua confiança, colocando em risco seu próprio

sentido de existência, não apenas da lei, mas principalmente das pessoas.

Apesar disso, a Casa de Dom Inácio continua aberta recebendo pessoas para

serem tratadas. O número de indivíduos está bastante abaixo das mil e cem pessoas,

aproximadamente, que passavam pela Casa de Dom Inácio diariamente; mas, mesmo

assim, é comum encontrar relatos de cura entre os frequentadores – alguns dizem

que a ‗energia salutífera‘ na Casa está mais forte (DIÁRIO DE CAMPO, 05.03.2019).

Desde que João de Deus iniciou sua atividade, computa-se que em torno de

11 milhões receberam atendimento (GARCIA, 2013), resultando em inúmeros relatos

positivos de pessoas que se disseram curadas (XAVIER, 2017; GARCIA, 2009;

CUMMING e LEFFLER, 2008; PÓVOA, 2016; ALVES, 1995 e 2012, MACHADO,

2016). Estudos demonstraram que em sessenta anos, realizando esses atendimentos

espirituais, o médium ganhou fama mundial e fez muitos admiradores, como

presidentes da república, ministros de estado, juízes, militares, advogados, médicos,

artistas e outros, incluindo milhares de adeptos, dentre esses, muitos chamados

afetuosamente de Filhos[as] da Casa. Devido à credibilidade do médium, a pequena

cidade de Abadiânia, no interior de Goiás, cresceu em infraestrutura, adequando-se

aos treze mil visitantes mensais, aproximadamente. Dentre estes, a maioria composta

por estrangeiros europeus. Antes do encarceramento do médium, o prefeito atual de

16

Abadiânia infere que João de Deus era responsável por 20% da economia da cidade

(apud ALBUQUERQUE, 2019); no presente momento, várias pousadas e hotéis já

fecharam as portas; mais da metade dos funcionários da Casa de Dom Inácio foram

demitidos; no comércio local identifica-se também um grande número de

desempregados (PORTINARI, 2019).

Outro aspecto da busca pelas intervenções espirituais está na relação inversa

que a desvalorização do modelo biomédico apresenta frente ao apreço pelas

medicinas complementares e alternativas; as intervenções espirituais atraíram

principalmente aqueles que enxergavam João de Deus como a última esperança; visto

que muitos doentes, desenganados pela medicina, viam o médium João como o

derradeiro médico.

Se uma pessoa tem uma doença incurável pela medicina alopática e deseja

de sobremaneira a cura, ela busca opções de restabelecimento. Assim, o motivo em

estudar a temática desta tese adveio de uma vivência pessoal, ou seja, conjuntivites

recorrentes que, mesmo medicadas por diferentes galenos, tornaram-se incuráveis

durante três meses de tratamento. Isto mobilizou ações para eu mesmo experimentar

a cura pelo médium na Casa de Dom Inácio. No processo da intervenção invisível,

senti como se alguém estivesse mexendo delicadamente nos nervos ao fundo dos

meus olhos, levantando e suturando-os. Ao final, saí da sala de intervenção sem o

incômodo dos sintomas e na semana seguinte nem me lembrava mais da doença.

Iniciada a pesquisa na Casa de Dom Inácio, foi possível comprovar uma

quantidade expressiva de pessoas que lá recorriam a curas espirituais por vários

motivos. Os palestrantes da Casa relatavam seus casos de cura ou chamavam

outros[as] Filhos[as] da Casa para testemunharem. Foi um desses depoimentos que

despertou a atenção no entendimento e análise dos sentidos e significados das curas

espirituais: uma senhora apareceu narrando que quando jovem engravidou, o pai a

expulsou de casa e ela, vagando sem rumo certo, com o filho nascido, portador de

uma deficiência nos olhos, veio parar dentro da Casa de Dom Inácio. Cansada e com

fome, ela só pensava em comer algo, curar o filho e arranjar um emprego para

sustentarem-se. Envergonhada para entrar na fila e ser atendida, encostou-se numa

coluna sem saber ao certo o que fazer. Diante do desespero, ouviu um nome igual ao

seu sendo chamado ao palco. De imediato, achou que fosse outra pessoa, mas como

ninguém apareceu, e devido à insistência, ela saiu detrás da coluna, levantou o braço

de modo inseguro e foi atendida. Surpresa por não ter dito seu nome a ninguém, João

17

de Deus afirmou que curaria seu filho, e ela emocionada disse que não tinha como

pagar porque estava inativa no mercado. O médium afirmou que não cobrava nada

de ninguém, e caso ela quisesse, ele poderia ajudá-la com um emprego. Ela finalizou

seu relato com voz embargada, afirmando que isso tinha acontecido há mais de oito

anos e desde então ela se encontrava lá ajudando, como Filha da Casa.

Diante desses e outros acontecimentos que a intervenção espiritual

proporciona aos visitantes da Casa de Dom Inácio e do modo respeitoso e prestativo

dos[as] Filhos[as] da Casa que trabalham naquele espaço, doando seu tempo ao

médium João e à espiritualidade, foi identificada a questão-problema da presente tese,

a saber: quais são os sentidos e significados dos[as] Filhos[as] da Casa advindos da

intervenção espiritual realizada por João de Deus em Abadiânia/GO? Provavelmente,

as intervenções espirituais proporcionam um pequeno significado a um grande sentido

para os[as] Filhos[as] da Casa, pois de um relato de cura, advieram grande mudança

de comportamento e sentido de vida. Vale ressaltar, que a nomenclatura ‗Filhos[as]

da Casa‘ não se restringe àqueles que frequentam a Casa propriamente, pois o termo

refere-se a todas as pessoas atendidas e escolhidas por João de Deus em Entidade,

e que se encontram espalhadas por todas as cidades do Brasil e do mundo. Nesse

sentido, optou-se como sujeitos de pesquisa os[as] Filhos[as] da Casa que trabalham

diretamente ao lado de João de Deus na Casa de Dom Inácio em Abadiânia, GO.

Como há escasso material sobre os que auxiliavam Zé Arigó (OLIVEIRA,

2014), ou seja, de seus colaboradores, esta pesquisa destaca-se pelo ineditismo da

investigação dos[as] Filhos[as] da Casa, tanto na Casa de Dom Inácio, como na linha

de pesquisa Cultura e Sistemas Simbólicos ou em outras linhas do programa de pós-

graduação em Ciências da Religião da PUC-GO. Sendo assim, a constelação

temática utilizada neste trabalho, norteada pelo fio condutor da questão-problema da

tese, centrou-se nas seguintes categorias: as intervenções espirituais, os sentidos e

significados e o espiritismo.

Como asseverado anteriormente, as intervenções espirituais que ocorrem na

Casa de Dom Inácio geralmente são as invisíveis; às vezes ocorrem com a pessoa

sentada na sala de intervenções ou na sala da corrente, concentrada em Deus, em

uma oração ou em outro símbolo representando amor. Porém, há relatos de que as

intervenções acontecem por toda a área interna ou externa da Casa. Quando ocorrem

fora da Casa, mas dentro da cidade de Abadiânia, as intervenções espirituais

acontecem especificamente nas pousadas. Sobre as intervenções, não se pode

18

olvidar que também há as que ocorrem a distância, com o adoentado recebendo-a há

centenas ou milhares de quilômetros de afastamento, como indicam os relatos

pesquisados e comprovados por exames de raio X (DIBO, 2013; GARCIA; 2009).

Entre as intervenções, as físicas são aquelas que causam mais assombro,

pois frequentemente o médium age de três modos: 1) ele faz uma simples incisão e

depois sutura; 2) utiliza-se da sondagem nasal, ou seja, uma pinça cirúrgica em

formato de tesoura, com um chumaço de algodão na ponta, embebido em água

fluidificada, introduzida na fossa nasal, recebendo os movimentos de rotação e fricção;

e 3) raspagem na retina, seja com uma faca pequena de cozinha ou um bisturi. É

comum também nas intervenções físicas o médium limpar o instrumento na roupa do

enfermo.

,

mais progressista, mas ambos almejavam um aluno atuante e

questionador, distante da passividade e da postura ‗bancária‘.

121

se tornar um FC na realização de um trabalho de ajuda ao próximo e a si mesmo.

Assim, nota-se sua ‗profundidade‘ emocional na lembrança com a escola, sendo o

médium João o professor e o diretor da mesma, ensinando seus alunos a praticarem

o que é aprendido. Em relação à ‗extensão‘, o FC2 entende João de Deus como

alguém que carrega uma bandeira e que recebe agressões, representando a

espiritualidade encarnada e sendo guia de luz para muitos. As ‗qualidades morais‘

destacadas referem-se à força e à coragem [por carregar a bandeira sob hostilidades],

à humildade, ao amor e à inteligência [ao enfrentar os problemas que resultam em

equilíbrio].

Cada Filho(a) da Casa tem seu modo de representar o médium, mas o FC3

causou admiração ao desenhar João de Deus sendo três em um.

O médium João é uma pessoa muito especial. Eu costumo dizer o

seguinte: nós temos três pessoas em uma só [risos]. Temos o seu

João, uma pessoa muito simples, muito carinhoso, muito preocupado

com todos. Nós temos o médium João, o médium João é conhecido

mundialmente, o João de Deus, John of God. E nós temos o médium

incorporado quando ele se entrega para as Entidades de luz fazerem

em seu trabalho humanitário. Então, o senhor João é aquela pessoa

que cuida de tudo, de todos e tem o seu lado humano, seu lado

assistencial com a Casa da Sopa, as crianças, o gabinete dentário e o

cuidado com os velhos. Enfim, tem assistência dentária na Casa da

Sopa, as campanhas que ele faz durante o ano de escola, uniforme

escolar, material escolar. Ele paga universidade para algumas

pessoas, tem um trabalho assistencial muito forte, muito bonito..., as

crianças, Dia das Crianças, as festas de fim de ano né, enfim, coisas

que talvez a ... a municipalidade não faça e que o médium João

consegue fazer na cidade de Abadiânia, então isso tudo é muito

importante. O médium João, pelo fato de ser inconsciente, até

recentemente, até o ano passado, o médium João não sabia que eu

não enxergava, poucas pessoas aqui na Casa sabiam, porque eu

andava devagar e tomava o máximo de cuidado para não cair, eu me

posicionava, conseguia me posicionar através do contraste. E as

pessoas vendo isso, até por falta de informação, enfim, as pessoas

acham que quem não enxerga usa bengala. E o paciente com

subvisão severa ou leve, ele não usa bengala, geralmente, e eu com

5% de subvisão eu caía, chegava aqui para sentar na corrente com a

calça suja e tal, mas eu tinha que vir sentar na corrente e as pessoas

não imaginavam que meu grau subvisão fosse tão severo, a ponto de

ser considerado como cegueira. As pessoas que tomaram

conhecimento depois do resultado da minha cirurgia onde a Entidade

pediu um depoimento e o médium João da mesma maneira, como ele

é médium inconsciente, quem me atendia lá dentro e fazia as

materializações, abria minha vista, fechava minha vista, era a Entidade

Doutor Augusto, o médium João não sabia, até que um dia eu tive

oportunidade de viajar por acaso – não tem por acaso –, por uma

convergência da espiritualidade mais uma vez, e tive a oportunidade

de viajar com médium João, onde ele percebeu que eu tinha uma

122

dificuldade muito grande para desembarcar do avião... e aí o médium

João perguntou se eu tinha problema de visão, se eu não enxergava.

Até então, depois de 9 anos, ele não sabia que eu não enxergava

[risos com lágrimas, voz embargada, pausa silenciosa para se

recompor]... E aí foi muito curioso, porque ele virou para mim e falou:

como é que você vai descer a escada do avião? Você não está

enxergando. Eu falei: se você emprestar seu ombro… eu desço com

mais segurança. Aí eu pus a mão no ombro do médium João e ele me

acompanhou até o desembarque no aeroporto. Foi um momento muito

especial que eu guardo no coração como se fosse hoje. Tenho uma

gratidão muito grande [lágrimas de alegria]... Então o médium João

representa para gente, primeiro o senhor João, o homem simples, um

homem que se fez na vida e que ajuda as pessoas, tem obra

assistencial; o médium João uma pessoa especial... pela missão que

ele cumpre, pela doação... de entrega total, pessoal, deixando a

família de lado muitas vezes, para ajudar milhares de pessoas que

vêm a Casa de Dom Inácio. O médium João representa os trabalhos

humanitários de um homem, a missão que esse homem tem para

cumprir, e o médium João incorporando as Entidades, a missão de

resgate de toda uma população. Então as quantidades enormes,

milhares de pessoas que vem à Casa de Dom Inácio, chegam aqui

fragilizadas e com ‗n‘ tipos de problemas, os mais graves possíveis e

imagináveis, muitas vezes terminais. Saindo aqui... ou saem curados,

ou saem com uma lição de vida, com uma pontinha de diretriz, de rumo

na vida, para poder fazer essa transformação pessoal. Nós todos

estamos aqui para evoluir, Abadiânia é uma grande escola, a casa de

Dom Inácio é uma grande escola. Não tem mágica. Como o médium

João mesmo fala sempre, não tem mágica, a cura está dentro da

gente, quem cura são as Entidades de luz, Deus, o nome que você

quiser dar, dependendo da sua crença, da sua fé. Então é isso que

representa o médium João, são três pessoas juntas em uma só (FC3).

A analogia foi uma simples representação, porém, original: João de Deus

como o homem João Teixeira de Faria, como médium famoso e veículo das Entidades.

Como homem, é casado com sua décima esposa, pai de nove filhos – mas não gosta

de falar de [ex-]companheiras e filhos (GARCIA, 2013) – é fazendeiro, pecuarista e

garimpeiro. Realiza ou tem várias obras assistenciais. O segundo, o João de Deus –

que ganhou esse apelido ‗de Deus‘ em Abadiânia, ‗carinhoso‘ segundo ele, por

lembrar ‗Deus, O puro amor‘; mais aceito que João Curador ou João de Abadiânia

(SAVARIS, 2013) – com suas atividades mediúnicas na cidade goiana, sendo o Jonh

of God ou ‗Joao de Deus‘ que reitera: ―you can deceive people for one year, two year,

but not for 44 years - that would be very difficult‖40 (WING, 2002, p.04). Como Entidade,

o grande trabalho de curar muitos e de sustentar a bandeira do amor por onde vai, em

qualquer parte do mundo.

40 ―Você pode enganar as pessoas por um ano, dois anos, mas não por 44 anos - isso seria muito difícil‖

(nossa tradução).

123

Como médium, talvez se possa enxergá-lo como um ser interexistencial pois,

algumas vezes, assume características não pertencentes ao homem João Teixeira de

Faria, como visto anteriormente. Uma amostra disso, por outro viés, é quando Heather

Cumming, FC dedicada e uma das autoras do livro que é utilizado nesta tese, afirma:

―eu sinto amor incondicional quando estou com o médium João e as Entidades‖

(CUMMING e LEFFLER, 2008, p.44). Por sentir o mesmo com ambos, isto pode estar

demonstrando certa fusão das personalidades imagéticas, ou melhor, caracterizando

uma espécie de generalização de estímulos entre João de Deus e a Entidade, ou a

manifestação da Entidade mesmo quando João de Deus está em estado de

consciência ou semiconsciência.

Sabe-se que João de Deus anuncia várias vezes no palco da Casa e nas

filmagens que não é ele quem opera as intervenções, mas Deus e os espíritos de luz,

deixando claro que ele, João Teixeira de Faria, não é o ‗ser do conhecimento‘, tendo

instrução de analfabeto funcional. Aparentemente essa Entidade, como o ‗ser do

conhecimento‘, é quem realiza os milhares de prodígios registrados em livros e vídeos,

seja em pessoas comuns ou autoridades nacionais ou mundialmente identificadas.

Sobre as materializações, o FC3 mostrou, após o término da entrevista e da

narrativa, uma foto de uma pedra de cristal em sua mão, com dois centímetros de

diâmetro. Havia um triângulo dentro dela; um triângulo branco, que parecida feito de

fumaça. Esse FC ressaltou que as Entidades atuam na matéria, na massa do corpo,

restabelecendo-a,

,

assim como fez a Entidade Dom Inácio que pediu a pedra que

estava com ele e segurou-a forte entre as mãos. Devolveu após alguns segundos e

pediu-lhe para falar alto o que via [lembrando que ele era quase cego]: ―um triângulo,

símbolo da Casa de Dom Inácio‖, asseverou FC3 (DIÁRIO DE CAMPO, 22.06.2018).

Segundo ele, o triângulo na pedra desapareceu com o tempo. Talvez isto, junto a

outros episódios, deram-lhe motivo de ver Abadiânia, mais especificadamente, a

Casa, como grande escola, com múltiplas aprendizagens, despertando habilidades e

competências.

Para aqueles que não acreditam nas curas ali atingidas, o FC3 talvez lance

um desafio ao dizer que ali não há mágica. Não obstante, como

assíduo há vários anos, ele sabe da frase comum dita pela Entidade Dom Inácio de

Loyola e frequentemente repetida na Casa: ―Para quem acredita nenhuma palavra é

124

necessária; para quem não acredita, nenhuma palavra é possível‖41 (apud SAVARIS,

2013, p.23). Sendo assim, o desafio lançado por não haver mágica pode ter resposta

satisfatória para quem acredita ou não acredita na mágica, visto que encontrará a

resposta pretendida, inviabilizando o próprio desafio. Sabe-se que propriamente ele

não lança desafio algum, quiçá, intriga o cético indeciso, que pode sentir-se desafiado.

Depois disso, o FC3 argumenta que ‗a cura está dentro de nós e quem cura são as

Entidades‘, o que traz preocupações, pois isto pode parecer um contrassenso, visto

que a cura está dentro ou fora – pelo menos em uma visão dualista.

Nesse contexto, confessa-se ignorância do processo, porém, tem-se clareza

da importância e da influência poderosa dos pensamentos no corpo biológico, como

mostra a pesquisa psicossomática, ou seja, a mudança de pensamento pode curar

dores e sofrimentos. A decifração desse enigma ainda é desconhecida.

No tocante às categorias de Lakatos e Marconi (2003), acentua-se sua

‗relevância‘ no tratamento pelo qual esse FC foi responsável, ou seja, de mudar seus

comportamentos com a esposa, filhos e funcionários durante nove anos, até obter a

cura, em uma espécie de ‗autointervenção‘. Nesse período, procurou enfrentar

dificuldades, ‗extrair ou cortar‘ costumes e pensamentos danosos ou substituí-los por

hábitos saudáveis. Ademais, observa-se o aspecto „especificidade e clareza‘ quando

o FC3 relata que por vários anos o médium não descobrira sua pouca visão, nem os

outros FC, e que somente a Entidade conhecia sua quase cegueira. A viagem de avião

em que o médium descobriu sua deficiência e o ajudou até o desembarque, dando-

lhe o ombro, tocou-o demasiadamente. Além disso, ainda se podem citar outras

situações pessoais e sociais em que o médium contribui com a municipalidade,

efetuando desde doação de material escolar para crianças carentes a pagamento de

cursos universitários para algumas pessoas, ou de pessoas que chegam à Casa com

‗n‘ problemas ou doenças.

Sobre a ‗profundidade‘, em relação à intensidade emocional, esse FC passou

por um longo processo de cura de sua cegueira, o que levou muito tempo,

necessitando mudar comportamentos com esposa, filhos e funcionários de sua

empresa durante nove anos. Desta forma, diante da pergunta sobre a representação

41 Sabe-se que esta é uma conclusão momentânea, pois, não raras vezes, para quem não acredita, é

possível apresentar vários fatos e argumentos, até que, aos poucos, passe a ter convicção daquilo, a

acreditar. Nesta mesma lógica, para quem acredita, às vezes, faz-se necessária certa explicação,

deixando de crer, e afirmando ‗saber‘.

125

de João de Deus, o mesmo embargou a voz por duas vezes e sorriu. Quando nos

mostrou a foto da pedra de cristal, seu sorriso jovial e lacrimoso estampou-lhe o rosto.

A ‗extensão‘ salta aos olhos frente à asseveração do FC3: ―O médium João representa

os trabalhos humanitários de um homem, a missão que esse homem tem para

cumprir, e o médium João incorporando as Entidades, a missão de resgate de toda

uma população‖, ou seja, o trabalho que o médium João realiza alarga-se frente à

libertação de milhares de pessoas que o procuram. Ocorre, aparentemente, uma

libertação de crenças errôneas e de enfermidades. Essas pessoas, se não saem

curadas, ―saem com uma lição de vida, com uma pontinha de diretriz, de rumo na vida,

para poder fazer essa transformação pessoal‖. Eis, na visão do FC3, as ‗qualidades

morais‘ salientadas do médium: simplicidade, carinho, atenção, filantropia, caridade,

dádiva, trabalho, abnegação e missão.

Por sua vez, o FC4 mostra-se entusiasmado com sua representação de João

de Deus, repetindo o seguinte sobre o médium: ‗tão lindo‘, ‗alma tão boa‘, ‗amo esse

homem‘, ‗adoro esse homem‘. Igualmente, ele ressalta as qualidades caridosas do

médium.

Olha, o senhor João é bravo, você sabe né? Ele é bravo, mas ele é

uma alma tão linda, tão linda, tão linda, tão boa, ele... ele faz caridade,

ele ajuda o povo, por exemplo, ele dá sopa pra todo mundo, que ele

não é obrigado né? Lá em cima, [do outro lado da cidade] tem a Casa

de Sopa, que ele fornece comida, sopa para os pobres. Então ele é

lindo demais, eu amo esse homem, eu amo esse homem, apesar que

ele conversa pouco comigo, eu não converso com ele, ele não

conversa comigo quase nem me conhece, só de vez em quando ele

me chama. Mas eu não sei, eu adoro esse homem, nossa, ele tem

uma alma boa, boa muito boa, nossa, eu nunca vi, nunca vi. Agora, a

Entidade é outra coisa né? A Entidade, ele tá na Entidade é outra

coisa, mas o seu João para mim, nossa senhora, nem meu pai, que

meu pai nada que era igual ele. O amor, ele tem muito amor pela

gente, ele tem amor pelos filhos dele, pelos pacientes que vão lá, ele

ama, ele chora quando ele fala, ele chora, a gente tem que chorar junto

com ele. Quantas vezes que eu choro com ele quando ele tá falando,

quando ele tava no hospital, ele passava aquelas mensagens para cá,

eu ficava chorando, ficava chorando, ele é lindo demais nossa

senhora, muito lindo [silêncio para conter emoção]. Quando ele tava

no hospital, por telefone, ele mandava mensagem por telefone. A

gente ouvia né, a gente ficava fazendo corrente aqui, e ele no hospital,

e nós ficamos, só não tinha a Entidade aqui, o resto a gente fazia tudo

normal, e ele dava aquelas mensagens pra gente. Nossa... nunca vou

sair daqui, nunca mais vou sair daqui. Quando eu viajo, por exemplo,

eu vou visitar minha filha nos Estados Unidos... eu chego lá, eu fico

pensando aqui na Casa (risos lacrimosos). ―Pai, você só pensa na

Casa; pai, curte aqui pai‖, e eu fico pensando e falo: ―pô, falta 20 dias

para chegar (risos) para mim ir embora‖. Eu amo isso aqui. Não sei

126

por quê pô [silêncio diante da emoção lacrimosa]... No que ele chegou

[do hospital] eu passei por ele, pela Entidade, e eu ia passar pela

Entidade, ele veio e falou assim: ―filho se você tivesse ficado onde

você tava [em São Paulo], você tinha sido atropelado ou estava na

cadeira de roda‖, porque eu era meio locão pra atravessar as ruas,

pois tenho labirintite né, então não posso atravessar a rua olhando

assim pros lados, eu vou pelo barulho, então assim, duas vezes ele

falou isso para mim, ele falou: se você estivesse morando lá ainda

você já teria ou morrido ou tava na cadeira de roda. Maravilhoso,

nossa, eu adoro esse homem, meu Deus do céu, não faço mais porque

eu não tenho mais jeito de fazer (emoção e silêncio para contê-la]...

Eu queria fazer, ajudar mais, mas eu tenho 80 anos já né? Tô que nem

ele, ele tem menos né, eu tenho mais que ele ainda... (FC4).

Como abordado anteriormente, João de Deus possui um lado áspero em sua

personalidade. É comum escutar ou ler que ele é severo na limpeza e na organização

da Casa (GARCIA, 2013 e 2009; CUMMING e LEFFLER, 2008). João também fica

irritado diante de mentiras, embromações e falta de ética das pessoas que convivem

com ele. ―Se brigo com alguma pessoa é porque gosto dela e

,

logo me desculpo‖ (apud

SAVARIS, 2013, p.36). Às vezes, essa aspereza é observada em algumas Entidades.

Elas ralham com as pessoas quando estas passam por determinada intervenção na

Casa e desobedecem às recomendações e orientações como não comer pimenta ou

não respeitar a abstinência sexual. Destarte, parece que o carisma por si só não basta;

há necessidade de certa severidade nas relações sociais e na condução do

tratamento.

A respeito do amor ao médium que o FC4 possui, aparenta que tal sentimento

advém não somente das obras sociais, das quais João de Deus ‗não é obrigado‘,

conforme ele afirmara, mas das condições proporcionadas pelo médium a todos na

Casa, particularmente a esse FC. No entanto, também não é apenas pelo motivo da

cura de seu câncer de próstata ou das enfermidades de seus familiares – como será

possível observar adiante – mas principalmente porque João de Deus o tirou de uma

cadeira de rodas, evitou seu atropelamento e possível falecimento. Isso reflete algo

comum na Casa: muitas apologias ao médium, pois sem ele nada disso aconteceria.

Em um dos dias de observação na Casa, presente na corrente do templo, ouviu-se

um FC repetir por três vezes, em seu discurso elogioso, pedindo responsabilidade e

concentração aos participantes: ―rezemos por João de Deus, pois graças a ele

estamos todos aqui; agradeçamos a Deus sua presença‖ (DIÁRIO DE CAMPO,

28.06.2018).

127

O médium se preocupa com os[as] Filhos[as] da Casa, pois mesmo estando

em tratamento de câncer de estômago [ocorrido em 2015], ele mandava mensagens

de conforto, as quais causavam comoção nos ouvintes. Percebe-se que o amor

dedicado ao médium se espraia às pessoas, aos lugares, às atitudes e outros. Assim,

todas as entrevistas realizadas foram com pessoas de autoestima elevada, mas a

alegria do FC4, a autoconfiança, o carinho com que tratou o pesquisador, e o amor ao

próximo se destacaram. Além disso, outros comportamentos desse FC se

sobressaíram, entre eles, o fato de ter ajudado uma vizinha japonesa, que veio se

tratar por causa da radiação da usina de f*ckushima; ele também já cuidou de quatro

cães de rua, e doou-os a pessoas responsáveis, ficando com um. Possivelmente, a

etimologia da palavra entusiasmo explique um pouco isso, pois, ―entusiasmo‖, do

grego enthousiasmós, significa 'transporte divino‘ (HOUAISS e VILLAR, 2009).

Mesmo sendo mais velho, o FC4 ama o médium mais que o próprio genitor; isso é

notado quando ele embarga a voz por quatro vezes, ao falar de João de Deus, durante

a entrevista; em um momento, parou de falar e conteve o choro alegre, de emoção.

Pode-se assim considerar que pessoas como o FC4 favoreceram o significado de

religião dado por Geertz ao estabelece-la como ―poderosas, penetrantes e duradouras

disposições e motivações‖ (GEERTZ, 1989, p.67).

Sobre as categorias de Lakatos e Marconi (2003), destaca-se que a

‗relevância‘ está na variedade de situações grandiosas e vividas emocionalmente

pelos FC graças ao médium João. Provavelmente não se ganha apenas saúde, mas

experiências e imponência de vida, o que se assemelha à categoria ‗extensão‘.

Quanto à ‗especificidade e clareza‘, o FC4 relata que o médium, quando em

tratamento de câncer em 2015, mandava mensagens de esperança e alegria aos

demais FC, que permaneceram trabalhando ali; ‗só não tinha a Entidade aqui, o resto

a gente fazia tudo normal‘42. Esse FC compara o amor que tem pelo pai ao que sente

42 Muitas pessoas perguntam ‗como será a Casa após o desencarne do médium?‘. Na opinião de Garcia

(2013), a Casa de Dom Inácio gira em torno do médium João de Deus e sem ele a Casa fechará.

Quando o próprio Garcia interrogou o médium sobre isto, eis a resposta de João: ―a Casa continuará

funcionando quando eu desencarnar, mas ainda vou viver muito‖ (apud GARCIA, 2013, p.178). Sobre

isto, passamos por uma experiência em 2015, época da ausência do médium para tratamento de

câncer. Participamos de uma operação espiritual na Casa; antes de terminar, uma FC veio e disse: ―o

médium João não está aqui, mas vocês foram todos operados. Operados pelas Entidades em nome de

Deus. Podem abrir os olhos‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 24.07.2015). Quando terminou de dizer, abríramos

os olhos e observamos três pessoas que estavam à frente. Uma olhou para outra e duas delas

esgazearam entre si ironicamente, balançando a cabeça em negativa, dando a entender que devido à

ausência do médium não houvera intervenção espiritual. Essa pequena experiência pode retratar o que

128

pelo médium, e o desse último ultrapassa. Ele relata que quando está longe da Casa,

sente grande vontade de voltar, como a de reviver o grande prazer deixado para trás.

De certo modo, também cabe nesse critério o fato de João de Deus em Entidade

relatar que caso o FC4 tivesse permanecido em São Paulo, ele estaria em uma

cadeira de rodas ou morto – pelo fato dele ter labirintite. Sobre isto, frisa-se o detalhe

do médium relatar o fato enquanto ‗estava passando pelo FC‘, o que evidencia, de

certa forma, a interexistência. As ‗qualidades morais‘ enfatizadas sobre o médium

foram: braveza, beleza, caridade, emotividade, bondade, amorosidade e

companheirismo.

A FC5, por sua vez, mostra-se carinhosa, respeitosa e admiradora do médium

João não só pelo que ele faz, mas pela disciplina e dedicação que são apresentadas

no trabalho.

Eu tenho um carinho muito grande pelo médium João, um respeito

muito grande por ele. Para mim é um grande irmão, um grande amigo,

não tenho palavras para te falar do médium João. Porque se dedicar

exclusivamente... nunca teve uma vida própria, nunca pôde se dedicar

à sua família. Hoje é que ainda ele se dedica um pouquinho mais para

essa filha e essa esposa. Então, não tenho palavras, sei que é uma

missão maravilhosa, linda, muito difícil, nada fácil. E cada um de nós

temos a nossa missão também. Eu tenho uma grande gratidão por

ele! (FC5, grifos de ênfase).

Para essa FC, faltam palavras para falar de João; é como se ela estivesse

diante de um grande fenômeno natural, em que a linguagem se mostra limitada frente

a tamanho assombro. Para Otto (1985), uma característica da expressão do sagrado

é justamente a ausência de conceitos para descrevê-lo. Assim, perante ao ―mysterium

tremendum, do mistério que faz tremer‖ (OTTO, 1985, p.17), desencadeiam-se

situações emocionais e racionais, porém, não tão racionais, visto que o lado não-

racional normalmente prevalece, ofuscando a compreensão teórica. ―O sentimento de

ser criatura ou a reação provocada no consciente pelo sentimento de ser objeto do

numinoso‖ (OTTO, 1985, p.13); algo exclusivamente no domínio dos sentimentos.

Quem nunca se sentiu bem ou ficou diante de uma ideia/ação responsável por resolver

um problema? Isto pode ser considerado uma hierofania? Pelo relato da FC5, sim;

seu silêncio revela estar diante de algo inominável, tremendum. Aparentemente, essa

FC vive em meio a hierofanias na Casa.

sustentou o médium João e, de certo modo, o próprio Garcia, ou seja, que a Casa pode existir por certo

tempo sem o médium; e de fato fechar, por descrédito. Porém, só o futuro realmente responderá.

129

Provavelmente, ocorrera uma forte demonstração hierofânica antes de

começar a entrevista, pois a FC5 elevou sua saia até o joelho e mostrou-nos uma

cena impressionante: seus dois joelhos não tinham patelas, formando uma cavidade

no lugar – os detalhes dessa experiência serão examinados no capítulo terceiro. Outro

exemplo dessa hierofania é o fato do marido da FC5, quase cego, depois de

intervenção espiritual com o médium, poder dirigir automóveis sem a necessidade de

óculos. Por trabalhar na enfermaria da Casa, essa FC convive e presencia inúmeros

casos de curas de enfermidades, considerados como ‗desenganos médicos‘.

Um novo aspecto refere-se à dedicação do médium quanto aos dias de

atendimento; ele nunca se ausentava dos dias de atendimento

,

presentes, eles serem convidados a assistirem de perto a

tais intervenções. A título de exemplificação, reitera-se o caso do Dr. Henry Puharich,

médico e pesquisador, que examinou Zé Arigó. Esse profissional se surpreendeu com

a velocidade, desenvoltura e qualificação do médium em ação, anunciando que,

possivelmente, no mundo inteiro, não haveria nenhum médico com tais qualidades

(FULLER, 1974). Provavelmente, sem desmerecer o talento da Entidade, as virtudes

do médium-instrumento igualmente favorecem as operações, demandando tempo

para esse preparo. Faz-se notar que, até hoje, nenhum caso de infecção ou erro

interventivo foi verificado na Casa. João de Deus alega que as Entidades nunca erram,

porque são seres de luz (SILVA, 2013). ―A medicina procura sempre acertar, mas

podem acontecer erros médicos, pois errar é humano. Nas curas espirituais, nunca

existem erros, pois os bons espíritos não erram‖, atesta o médium (apud GARCIA,

2013, p.145).

Esse FC apregoa sobre as várias pessoas que já foram curadas pelo médium

e sobre as que não receberam a cura. Essas últimas devido à pouca inteligência que

elas possuem; assim, ele as chama de imbecis. Não se pode colocar todos os não

curados nessa classificação incômoda, pois há os que não merecem, como é

constantemente lembrado na Casa. Os considerados imbecis, o FC6 declara que são

aqueles que vêm à Casa, recebem o tratamento, mas não seguem adequadamente

os cuidados pós-interventivos – tanto os profiláticos, quanto os morais – não

demorando para reaparecerem com os mesmos problemas ou outros semelhantes.

Eles, normalmente, são renitentes nos hábitos perniciosos, mantendo padrões de

comportamento pouco mutáveis. Quem está de fora, observando, pouco pode fazer,

a não ser, muitas vezes, darem-lhes bronca pela irresponsabilidade praticada, ou

deixarem que sofram as consequências, contando com a esperança de um dia

mudarem. Outro ditado constante na Casa é: ―quem não vem pelo amor, vem pela

dor‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 21.12.2017); nesse sentido, deve-se ter paciência para que

as dores advindas de inconsequências levem as pessoas a refletirem sobre suas

urgentes mudanças. Como já relatado, João de Deus também ralha com alguns que

têm contato com ele e a Entidade faz o mesmo; talvez tendo a insensatez como

motivo.

133

Faz-se importante mencionar que é senso comum na Casa dizer que a cura

vem por merecimento; os próprios livros sobre João de Deus asseveram isso

(GARCIA, 2009; CUMMING e LEFFLER, 2008). Assim, sobre as pessoas que não

merecem a cura, questiona-se: como algumas podem não a merecer? Alguém que

vem até João de Deus e não é curado é porque não merece? Ele merece o

sofrimento? [Nesse sentido, reforça-se a concepção de Geertz (1989) ao apontar que

o ser humano precisa de respostas; ele possui uma grande dependência pelo símbolo;

caso não tenha, encontra-se no vazio, lugar sofrível]. Estas e outras inquietações

fizeram com que outra pergunta fosse direcionada a alguns entrevistados: ‗Como se

deve entender o merecimento pela cura?‘. Eis uma sinopse das respostas:

Não se trata de Deus escolher: este merece a cura, aquele não! Tem

a ver com causa-efeito. Se você faz o que deve ser feito, os resultados

propícios aparecerão. Você os merece? Sim. Ainda não se curou?

Falta trabalhar mais coisas, principalmente em entender que não há

cura mágica, mas tratamento espiritual na Casa. Por outro lado, pode

ser reflexo de carma, isto é, de algo que você mesmo tem que se

purgar, seja através de doença ou conflito, o que reincide no

argumento anterior de causa-efeito [...] (FC2, FC3, FC6 e FC7).

O FC6 considera João de Deus um grandioso homem, amoroso e líder. O

médium não gosta quando lhe trazem fofocas, assim como esse FC. Os que assim

procedem, o FC6 compara-os a Judas, o traidor do Cristo; são egoístas e sedentos

de coisas materiais. Apesar disso, fica implícito ao FC6 que o médium João confia

neles como uma sem*nte que ainda não frutificou ou uma árvore da qual se espera

um bom fruto. Talvez o FC6 intua, pela lógica, que um dia esses ‗Judas‘ farão belas

obras. Desta forma, para esse FC, João de Deus é o maior poder que se tem hoje na

Terra; ele caminha com a humanidade, incluindo todos os seres, humanos e as

Entidades, rumo a um aperfeiçoamento cada vez maior, deixando subentendido a lei

de causa e efeito do espiritismo, segundo a compreensão comum na Casa:

Entretanto, em virtude do axioma de que ‗todo efeito tem uma causa‘,

essas misérias são efeitos que devem ter a sua causa, e desde que

se admita a existência de um Deus justo, essa causa deve ser justa.

Ora, a causa sendo sempre anterior ao efeito, e desde que não se

encontra na vida atual, é que pertence a uma existência precedente.

Por outro lado, Deus não podendo punir pelo bem que se fez, nem

pelo mal que não se fez, se somos punidos, é que fizemos o mal. E se

não fizermos o mal nesta vida, é que o fizemos em outra. Esta é uma

alternativa a que não podemos escapar, e na qual a lógica nos diz de

que lado está a justiça de Deus (KARDEC, 1991, p.78).

134

Em relação às categorias de Lakatos e Marconi (2003), corrobora-se que a

‗relevância‘ não se reduz à percepção de cura, mas é ampliada na compreensão de

tratamento espiritual aos FC e frequentadores em geral, ou seja, a libertação de

sofrimentos e de doenças é um processo no trabalho de autoaperfeiçoamento e

persistência na melhora dos comportamentos e pensamentos. Em relação à

‗especificidade e clareza‘, o FC6 alerta que o trabalho do médium não é fácil. Isso se

deve ao tipo de pessoas semelhantes ao Judas bíblico, isto é, pessoas irresponsáveis

com o propósito maior da espiritualidade. A ‗profundidade‘ se mostrou na intensidade,

de certo modo irada, ao falar dos imbecis e de ‗Judas‘ que frequentam a Casa. Os

risos surgiram diante da possível fala resignada do médium frente aos fofoqueiros:

―olha o que estão fazendo com meu povo‖ e, qualquer um que, usufruindo de situações

benéficas na atualidade, optar pelo erro, gerará consequência funesta, o que pode ser

assemelhado a categoria ‗extensão‘.

Nesta última categoria, ‗extensão‘, é possível incluir que João ―é o maior poder

que tem hoje na Terra, recebendo essas Entidades, que estão se aprimorando cada

vez mais...‖, com destaque ao maior poder hoje na Terra a contribuir não só com

goianos ou brasileiros, mas com toda a humanidade. As ‗qualidades morais‘

apontadas ao médium são: iluminado, poderoso, líder, amoroso, braveza e confiança.

Sobre a característica ―poderoso‖, nota-se certa discrepância com outras

representações sobre João de Deus e em referências lidas: ―milhões de pessoas ele

já curou‖ visto que o médium comumente reitera não ser ele quem cura, mas Deus e

os espíritos de luz, e que ele é apenas um veículo, um instrumento (DEPOIMENTO,

2017; PÓVOA, 2016; GARCIA, 2013).

O FC7 tem João de Deus como, além de um amigo, um missionário que

precisa da ajuda dos afins para também carregarem a estandarte amorosa. Como fiel,

esse FC ajuda os necessitados, muitos deles, descrentes.

O médium João representa, para nós, além de um amigo – embora

não há aquele convívio social que não é possível porque ele é muito

ocupado – ele representa a figura de um missionário que veio pra

cumprir essa missão e precisa de ajuda. Então ele representa pra nós

o nosso líder, nesse aspecto que nós devemos ajudar sem interesse

nem nada, entendeu? Um dia nós falamos pra ele, ele de vez em

quando chora no palco né, ele chora quando tá conversando: ―ah eu

quero que Deus me dê saúde pra eu continuar essa missão, levar

minha bandeira‖ aí nós falamos pra ele numa ocasião: ‗Seu João, nós

estamos aqui, pra ajudar carregar essa bandeira, até quando Deus

permitir‘ [o entrevistado se emociona. Tempo para recompor]. É um

135

pouco de gratidão, fidelidade primeiramente, pra ajudar esse povo que

vem aí, e muitos não acreditam né, outros

,

acreditam, vem com fé,

porque a Entidade fala na lata: ‗você veio com fé – pra algumas

pessoas – a fé que você tem no coração, eu vou te dar, eu vou te dar

o que você precisa‘, ele fala, tem frases que ele fala. Talvez você não

tenha ouvido, mas tá nos vídeos. Porque tem gente que às vezes vem

se queixar e fala: ‗ah, mas eu melhorei daquilo, mas agora não sei o

que voltou‘, né, aí ele falou assim: ‗filha, eu posso te dar cura, mas

quem dá vida é Deus‘, quer dizer que a pessoa, você já ouviu falar

isso? ‗Eu posso – autorizar né – eu posso te dar a cura, mas quem dá

a vida é Deus‘, entendeu? Então ele também trabalha no organograma

gigantesco que tem as limitações dele. Eu já ouvi ele falar pra algumas

pessoas – inclusive lá em casa – ‗ah, a gente já era pra ter ido embora,

mas tá ficando mais tempo‘, tem uma sobrevida, com permissão,

porque a pessoa tá trabalhando, aí você fala: ‗oh, mas e aquele

Fernandinho Beiramar que vai ficar 30 anos na cadeia? Tá forte e

sadio lá, faz exercício... Mas é porque, às vezes, ele tem que ficar pra

pagar ou sentir, sentir alguma coisa ali que ele tem que mudar de vida,

ou seja, na próxima vida ele vai vir melhor, porque todos somos

irmãos, com a meta de que foi planejada seguir, de seguir um caminho

que é o caminho da perfeição, leve séculos, milênios, ou não, um dia

chegaremos lá, todos juntos, uns primeiros, outros não [risos] (FC7).

Para esse FC, o médium João é amigo ‗de frequentar a residência‘ e

apresenta-se amoroso; ele deseja auxiliar mais as pessoas e recebe de Deus mais

tempo para sua missão. No entanto é consciente de que já ganhou sobrevida, porque

trabalha para o bem do próximo. Este é um discurso espírita comum, repetido em

alguns lugares, o de purgar carmas fazendo o bem, livrando-se de consequências

piores. Dessa forma, ganha-se mais vida alegre, vive-se mais.

Para o FC7, às vezes, a Entidade afirma: ‗vou te dar o que você precisa, você

veio com fé‘; esta é uma sentença inquietante, visto tratar-se de um templo ecumênico,

com princípios de não desmerecer qualquer credo, mesmo àqueles que não o têm.

Assim, na seguinte fala, observa-se o contrário: ‗não vou te dar, porque você veio sem

fé‘. No entanto, pelos discursos da Casa, isto não ocorre, pois se respeita a todos. A

proposição então pode ser entendida como uma espécie de recompensa pela

quantidade de fé que a pessoa possui – se é que se pode falar em quantidade, em

grau – ou pelas obras realizadas através dela. De qualquer forma, o FC7 reforça a fé

e diz, por dedução, àquele que a tem em menor intensidade: ‗faça mais para também

receber‘. Isto parece estar atrelado ao discurso do merecimento, visto anteriormente,

pois se a fé realiza ações condizentes, aqueles que necessitam da cura são

agraciados com ela, justamente pela fé. De qualquer forma, João e a Entidade

valorizam e fortalecem a fé através desse discurso.

136

Provavelmente reforçando o parecer da fé visual – ao contrário da fé cega –

presenciamos, durante a observação, uma cena destemida no palco da Casa, em

2016. Após a oração inicial e uma breve palestra, João em Entidade apareceu, subiu

ao palco, pediu uma camiseta e, após recebê-la, cobriu os olhos amarrando-a por trás

da cabeça – tapando-lhe o rosto inteiro – e, com um bisturi na mão, fez uma raspagem

no olho de uma jovem mulher. A cena foi impactante. Parecia não ser ele, a pessoa

João Teixeira de Faria ou João de Deus a operar (DIÁRIO DE CAMPO, 11.08.2016)

aquela moça. Pela leitura de Savaris (2013), deduz-se que nesse dia havia muitos

estrangeiros na Casa, normalmente mais céticos, sequiosos de provas espirituais. Se

queriam, o médium as deu, quiçá, para aumentar-lhes a fé, mormente a visual.

De outra forma, há um adendo do revisor José Fuzeira, no livro Mediunidade

e cura, de autoria do espírito Ramatís, intitulado ‗A luz dos fatos dissipará as trevas

da dúvida e da ignorância‘. Neste, Fuzeira apresenta uma entrevista que o médico e

pesquisador, Dr. Henry Puharich, cedeu à revista Edição Extra, em setembro de 1963,

relatando seu espanto pela operação física que Zé Arigó empreendeu nele. Puharich,

perplexo pelo o que ocorrera, conclama que a comunidade científica pesquise o

fenômeno Zé Arigó, no intuito de apreender suas técnicas. O autor desse anexo

argumenta que sobre o ‗atual‘ momento das pessoas de serem despertadas por

evidências sensoriais: ―[...] a Humanidade tem de ser forçada pela evidência

sensacional dos próprios fatos, a olhar de frente e a aceitar como absolutamente

incontestáveis os fenômenos ou realidades aparentemente abstratas, do mundo

invisível‖ (apud MAES, 2006, p.169). Possivelmente, o que João de Deus almeja, ao

realizar uma intervenção vendado, seja o que Fuzeira alerta, isto é, propiciar que o

entendimento desses fatos promova novos olhares ao mundo espiritual.

Conforme o FC7, é relevante mencionar o organograma gigantesco no qual o

médium trabalha, recordado após a assertiva ―quem dá vida é Deus‖. Talvez essa

afirmação do grande organograma seja uma dedução deste axioma comumente

exposto na Casa, via palestras: ―Minha falange não é composta de dez, nem de cem,

mas de milhares. Eu sou aquele que vai às profundezas do abismo para resgatar uma

alma" (DIÁRIO DE CAMPO, 20.06.2018). De autoria da Entidade denominada Dr.

Augusto de Almeida, esse postulado busca evidenciar que o trabalho na Casa não é

realizado por uma Entidade apenas, acompanhada por uma corrente de pessoas, mas

por milhares de espíritos que atuam no plano invisível desse lugar, considerado um

137

hospital espiritual. Assim, não há apenas uma Entidade curadora, mas inúmeros

médicos desencarnados e vários auxiliares.

Abundantes fenômenos acontecem nas dependências da Casa, mesmo sem

João de Deus por perto: desmaios repentinos, sonolências incontroláveis, dores

inusitadas, surgimento espontâneo de cicatrizes, choros convulsivos, sentimentos

sublimes despertados, êxtases, comprimidos de passiflora que estabilizam doenças

graves, água fluidificada eliminando incômodos e outros. Tudo isso faz com que haja

uma suspeita de que vários fatos possam acontecer sem que os olhos corporais

vejam. Ademais, citam-se as demais intervenções com cortes, as quais não doem,

não infeccionam e rapidamente se regeneram, quando o médium está próximo ao

paciente. O próprio João de Deus assevera que não há limites de intervenções ao dia.

―Isto porque são milhares e milhares de espíritos trabalhando em um mesmo dia‖

(apud GARCIA, 2013, p.145). Quiçá, esse organograma espiritual seja o reflexo de 11

milhões de atendimentos, dos quais ninguém tenha reclamado (GARCIA, 2013) ou

‗exigido seu dinheiro de volta‘ – aquele pago pelo frasco de passiflora na farmácia,

cuja responsabilidade fica sob uma farmacêutica, como já explicitado. Sobre o

‗ninguém tenha reclamado‘, as denúncias sobre abusos sexuais praticados pelo

médium que vieram a público em dezembro de 2018, colocam em suspensão tal

assertiva.

Faz-se importante destacar o lado sentimental apontado pelo FC7: ―ele [o

recalcitrante] tem que ficar pra pagar ou sentir, sentir alguma coisa ali; que ele tem

que mudar de vida‖. De certo modo, em muitas situações, os pensamentos e

sentimentos atuam juntos na resolução de um problema. O que este FC faz é levantar

um lado do véu da ignorância, aparentemente óbvio, isto é, de que os sentimentos

são também critérios de mudança e persistência, não somente os pensamentos.

Porém, não se trata apenas dos sentimentos comuns como ver o pôr do sol no alto da

montanha, rever e abraçar a pessoa amada ou ouvir Clair de lune, de Beethoven. Ele

refere-se aos sentimentos surgidos em situações difíceis, tais quais doenças, prisões

justas ou injustas, a morte de um ente querido, dos sofrimentos atrozes, das anomias

e outras que forçam aquele que sente rever posturas, verificar erros, replanejar

atitudes, traçar novos objetivos e buscar almejá-los,

,

indo ao encontro de novos

sentimentos – e ou emoções – substituindo os velhos. Não seria esse sentimento novo

o motivo dos FC permanecerem tanto tempo ao lado de João de Deus? Como João

138

de Deus faz aflorar esses sentimentos? Talvez a nascente disciplina ‗sociologia das

emoções‘ possa contribuir para o entendimento desse aspecto motivador.

Para o antropólogo inglês Whitehouse (2005), pesquisador da relação religião

e estados cognitivos – entre estes, a emoção – deve-se dar importância aos rituais.

Esses protocolos, altamente emocionais ou brandos, dão origem a estados sólidos de

vínculo religioso, devido ao alto nível de excitação emocional envolvida. Mesmo o

ritual ocorrendo em tempo reduzido, eles geram memória duradoura, prolongada

devido a reflexões próprias. ―Typically, conversion experiences involve high levels of

emotional arousal, giving rise to enduring episodic memory, and resulting in revelatory

religious insights developing through internal rumination43 (WHITEHOUSE, 2005,

p.225). Voltando à Casa, não é incomum encontrar pessoas que a frequentam porque

se sentem bem. ―Aqui me sinto renovada, alegre, cheia de energia‖ (DIÁRIO DE

CAMPO, 21.06.2018), comentou uma frequentadora da Casa. A própria Cumming

afirmou que por sentir um amor incondicional na Casa, permanece nela, perfazendo

dezenove anos (CUMMING e LEFFLER, 2008). Pesquisas futuras poderão apontar

se reviver o mito em todo ritual significa reviver a emoção causada por ele.

Por outro lado, ao tratar das Ciências Sociais, o antropólogo Koury (2005)

define emoção como ―uma teia de sentimentos dirigidos diretamente a outros e

causada pela interação com outros em um contexto e situação social e cultural

determinados‖ (KOURY, 2005, p.239, grifos do autor). Desta forma, ao refletir sobre

sentimentos e ou emoções surgidas antes, durante ou após momentos incômodos,

como doenças, conflitos ou outros, há uma evidente relação interligada entre pessoa,

cultura e sociedade, inferindo que emoções negativas também são ensinadas,

apreendidas e expressas dependendo das normas ambientais que a pessoa faça

parte. Destarte, como os sentimentos e emoções se interatuam de acordo com os

repertórios culturais, não é de estranhar que, dependendo dos estímulos externos,

faz-se surgir ou substituir emoções e sentimentos negativos por positivos. Por não ser

escopo deste trabalho, talvez investigações no porvir poderão revelar essa

substituição emocional na Casa. De todo modo, fica evidente a força motivacional da

emoção. Provavelmente, foi refletindo sobre a emoção desconfortante das doenças

impulsionadoras de mudanças que Garcia (2013) anunciou: ―a doença faz a pessoa

43 ―Geralmente, experiências de conversação envolvem altos níveis de estimulação emocional,

originando uma memória episódica e duradora, resultando revelações religiosas perspicazes,

desenvolvidas através de ruminação interna‖ (nossa tradução).

139

compreender melhor o mundo, o grande segredo da morte, e que a verdadeira vida

não se resume ao curto espaço de tempo entre o berço e o túmulo‖ (GARCIA, 2013,

p.166).

No tocante as categorias de Lakatos e Marconi (2003), sublinha-se que a

‗relevância‘ sobressai nesta fala do FC7: ―sentir alguma coisa ali que ele tem que

mudar de vida‖, ou seja, muitos mudam de vida ao ‗sentir que devem‘, não

necessariamente ao ‗pensar que devem‘, elevando o sentimento ao nível de decisões

existenciais, revelado igualmente por pessoas que se dirigem à Casa. Sobre a

intensidade da ‗profundidade‘, vale frisar que esse FC foi o mais emotivo na resposta

sobre a ‗representação do médium para ele‘; em pelo menos quatro momentos foi

possível observar seus olhos marejarem, mas somente uma vez ele se silenciou

embargando o choro. Isto ocorreu justamente após o médium dizer que ‗está aqui até

quando Deus permitir‘, revelando que a ausência do médium será sentida em demasia

por muitos que o acompanham. O riso do FC7 surgiu ao refletir que todos estão no

caminho da perfeição, desde o meliante até os honestos – considerados irmãos –

sendo que o mundo inteiro atingirá esse objetivo, sendo alguns mais adiantados que

outros. Talvez o riso revele que não se precise ter vida agitada, porque há muito

tempo; basta traçar metas espirituais. Isto está em conformidade com a ‗extensão‘ da

resposta, ou seja, que a reencarnação é uma lei natural que faz todos evoluírem, como

apontado por FC7: ―na próxima vida ele vai vir melhor‖. As ‗qualidades morais‘

ressaltadas do médium foram: amigo, missionário, líder e emotivo.

Para finalizar o que representa João de Deus para os FC, a FC8 apontou que

o médium é seu melhor amigo porque ele ‗quebrou todos os galhos da minha vida‘,

sendo assim considerado um porto seguro pela sua família, que foi socorrida em

situações complicadas.

O seu João para mim é uma pessoa que eu tenho, melhor amigo.

Assim, apesar da gente, às vezes, não conseguir nem falar com ele,

porque está sempre... Antigamente, tinha mais acesso ao seu João.

Ele quebrou todos os galhos da minha vida, da minha família; o seu

João ajudou a minha família, se não fosse ele, com toda essa, essa

ajuda que ele tem, eu não sei como seria, porque minha família passou

por momentos muitos difíceis e ele sempre foi nosso porto seguro. O

seu João assim... Nossa, eu ligava para ele, incomodava ele demais,

sabe? ‗Seu João, eu estou precisando‘. Tem uma história que

aconteceu comigo, parecia que eu ia desencarnar, eu estava mal,

parecia que meu peito ia estourar. Telefonei desesperada, contei e ele

me disse: ‗não, não é assim, esquenta um pouco de leite e come com

aveia‘. Eu comi e dormi. Acordei algumas horas depois e não tinha

140

nada. Depois o senhor João me explicou: ‗era um obsessor que estava

contigo ali, que havia desencarnado por ataque no coração, e ele

estava ao seu lado transmitindo todas aquelas sensações‘. Dias atrás

meu pai falou para a Entidade assim: ‗eu não queria deixar a minha

filha sozinha‘ e tal, daí a Entidade falou: ‗ela não está sozinha, nós

estamos com ela e o médium também‘, daí eu falei: ‗eu sei que o seu

João, se eu precisar, qualquer coisa que eu precisar ele está pronto‘.

Então assim, só que eu hoje, de tanta coisa que ele faz, a gente evita

de ficar em cima dele assim, pedindo as coisas, mas eu sei que

quando eu precisar mesmo, quando ele vê que é necessário, ele

ajuda. Então, ele é uma pessoa da minha família! Meu Deus, meu pai

também, meu pai diz que seu João é melhor amigo dele, aquele amigo

que tu sabe que é teu amigo para sempre, que tu sabe que tu não vê

com frequência, mas que está ali sempre, é um amigo que tu tem para

vida inteira, para essa e para outras vidas. Então é uma pessoa que

assim, eu tenho o maior respeito, maior carinho, amor. A gente

considera seu João como da nossa família mesmo. É como se ele

fosse para mim um tipo de pai mesmo, sabe? Quando meu pai não

está aqui, ele é meu pai, se eu precisar, eu sei que eu posso contar

com ele. Então, é uma pessoa que eu admiro muito porque, imagina

assim, tantos anos, ele tooooda semana, ele está aqui, não importa

se está com dor, maior exemplo. Eu estava lendo um livro de Dom

Inácio e dei para meu pai também esse livro, um livro que foi escrito

por um jesuíta. Eu já li vários livros de Dom Inácio, mas esse livro é

bem profundo e ele fala assim de uma maneira muito... ele é intenso

para mim, ele é assim pesado, mas ele é bem interessante. E Dom

Inácio sofria, tinha muitas dores físicas, dores assim, e ele diz depois

– acho que nesse livro que fala – que quando desencarnou ele teve

problema de vesícula seríssimo, por isso que as imagens são meio

amarelas, pálidas. E ele tinha dores horríveis, e ele não se queixava,

ele fazia aquele trabalho e caminhava, caminhava e aquela perna dele

toda, toda mal e todo daquele jeito. Ele foi considerado... tem um livro

que é ―Os santos que abalaram o mundo‖ esse livro também é muito

,

bacana... é lindo esse livro, é de 1900 e pouco e minha mãe achou em

um sebo e aí a gente já começou a fazer cópia e distribuir para as

pessoas também, e ele fala de Santo Inácio de Loyola, Santo da Força

de Vontade. É lindo esse livro! Ele fala sobre Santo Antão, Santa

Terezinha, São Francisco de Assis. Mas Santo Inácio de Loyola é

chamado o Santo da Força de Vontade! Tu lê aquele livro também, é

uma leitura mais amena assim e esse outro livro que agora estou lendo

é um livro pesado, mas ele é muito importante, jesuíta mesmo. Então

assim, é isso (FC8, grifos de ênfase).

Chama a atenção o fato do médium João ter orientado a FC8 a tomar leite

morno com aveia diante dos sintomas sofríveis e, depois de acordar, ela não sentir

mais o desconforto. Possivelmente, ele tenha utilizado de sua capacidade clarividente,

como destaca Savaris (2013). Para essa autora, pesquisadora de João de Deus,

clarividência significa visão ou conhecimento a distância. Segundo Richet, ―é a

capacidade de perceber visualmente sem usar o sentido das vistas, cenas, imagens

e seres, tanto visíveis como invisíveis para as pessoas comuns‖ (apud SAVARIS,

141

2013, p.71). Ou, talvez, simplesmente se utilizar de sugestão mental sabendo da

eficácia simbólica que a imaginação causa e desencadeia nos sistemas orgânicos. De

qualquer forma, João pôde perceber a distância a causa do problema e orientar a

solução. As pessoas que estão próximas à morte, como a FC8 esteve, pensam em

encontrar, em ter alguém para resolver de modo simples seus problemas, sem pagar

nada por isto, e ainda ter essa pessoa para inúmeras situações problemáticas. E isto

faz com que realmente se desenvolva um grande afeto por tal pessoa; ela passa a ser

alguém para estreitar laços ‗eternos‘.

Ao ler alguns livros sobre Dom Inácio de Loyola, a FC8 não teve dúvidas de

comparar o médium João com esse santo católico pois, segundo ela, ambos se

dedicaram incansavelmente em suas missões, mesmo com problemas físicos, os

quais os atrapalharam. Com relação a João de Deus, ele ainda tem problemas e

missões. ―Então, é uma pessoa que eu admiro muito porque, imagina assim, tantos

anos, ele tooooda semana, ele está aqui, não importa se está com dor, maior

exemplo‖ (FC8, grifos de ênfase). Conforme Póvoa (2016), Dom Inácio, mesmo

mancando – devido ao grave ferimento na batalha de Pamplona, em 1521 – depositou

seu equipamento militar aos pés da imagem da Virgem Maria, doou suas ricas roupas

a um mendigo, vestiu tecidos de saco e saiu pelo mundo a estudar, catequizar

crianças, fundar instituições de amparo a prostitutas, pobres, doentes e outros. Foi

preso duas vezes pela Inquisição, mas solto depois que constataram que ele não era

perigoso para a Igreja. Persistia na cura aos necessitados e em levar a palavra de

Jesus. Para João de Deus, Dom Inácio, o santo da força de vontade, é seu protetor

(GARCIA, 2013).

O médium João teve um derrame cerebral em 1992, o que paralisou o lado

esquerdo de seu corpo – olho, braço, mão e perna. Foi hospitalizado, mas se recusou

a ser operado e abandonou o tratamento recomendado pelos médicos [o que em suas

palestras recomenda não fazer]. Mesmo ficando com sua mobilidade comprometida,

no dia seguinte voltou ao atendimento na Casa. Porém, quando estava incorporado,

os sintomas paralisantes cessavam, e quando a Entidade ia embora, eles voltavam.

Contudo, ―a situação não durou muito. Alguns meses após o derrame, o médium João,

incorporado, realizou cirurgia em si mesmo‖ (GARCIA, 2013, p.74). Atualmente, no

salão principal da Casa, há uma foto dessa autointervenção, mas o próprio médium

afirma que foi operado pela Entidade presente no momento. ―Nunca fiz cirurgia em

mim mesmo. As minhas mãos foram usadas pelas Entidades para me cirurgiar‖ (apud

142

GARCIA, 2013, p.82). Esse fato gerou certa desconfiança de ‗fingimento do João‘

entre algumas pessoas. E o médium respondeu:

As cirurgias com corte são realizadas, quase sempre, quando a

pessoa não acredita em cirurgia espiritual invisível. No meu caso

pessoal, a cirurgia com corte que a Entidade realizou em mim teve

como objetivo demonstrar que não havia fingimento, como

maldosamente comentavam algumas pessoas, sobre a paralisia em

todo o lado esquerdo do corpo, resultado de um derrame cerebral

(apud GARCIA, 2013, p.82).

Após essa intervenção, João não teve mais os sinais da doença. E é notória

a dedicação disciplinada do médium nos dias de atendimento na Casa. Essa sua

postura de obediência ou dever – ‗dever‘ diria Kant44 – à sua missão – talvez se

espelhando em Dom Inácio, seu mentor – serve de exemplo aos FC e frequentadores.

Mesmo não seguindo seus passos, isto aumenta a admiração das pessoas pelo

médium. Esta e outras qualidades se destacam em alguns humanos disciplinados; e

não é incomum que tal pessoa, após seu passamento, seja enaltecida e, porventura,

elevada à ‗santa‘, ‗super-homem‘, ‗metade humano, metade deus‘, ‗humano raro‘ ou

outros adjetivos atípicos.

No que se refere as categorias de Lakatos e Marconi (2003), salienta-se que

a ‗relevância‘ está na capacidade de alguns FC conceberem João de Deus como um

membro da família, um pai inclusive: ―A gente considera seu João como da nossa

família mesmo‖; ―qualquer coisa que eu precisar ele está pronto‖ (FC8); decorrendo

assim vários sentimentos a esse ente paterno e, por consequência, certa intimidade.

Faz-se notar que durante nossa entrevista-narrativa, essa FC demonstrou ser uma

filha de coração do médium João, uma filha dedicada e devota. Isto se liga à

‗profundidade‘, ou melhor, à intensidade emotiva que ela atribui ao médium, ficando

evidente em frases como: ―para mim é uma pessoa que eu tenho, melhor amigo‖; ―um

amigo que tu tem para vida inteira, para essa e para outras vidas‖. Igualmente, em

palavras de grande ênfase na voz: ―Meu Deus, meu pai também, meu pai diz que seu

João é melhor amigo dele‖ (FC8, grifo de ênfase). Além disso, tal intensidade se

verifica na comparação do médium com Santo Inácio, em sua equiparação simbólica.

44 Conforme Kant, pode-se dizer que a atitude do médium se assemelha a uma lei autoimposta, uma

espécie de imperativo categórico. A vontade, mesmo livre, diante do princípio estabelecido, não tem

outra opção a não ser realizar o que deve, sendo um comando incondicional. “Obrigação é a

necessidade de uma ação livre sob um imperativo categórico da razão‖ (KANT, 2003, p.65, grifo do

autor). Não é raro uma pessoa se destacar no meio religioso devido a esse tipo de dever, mas em

outras áreas do conhecimento pode acorrer o mesmo.

143

Sobre ‗especificidade e clareza‘, é relevante apontar que essa FC relata que o médium

João já ajudou toda sua família sendo, desta forma, considerado um porto seguro; ela

destaca a lembrança do santo, da ‗força de vontade‘ e dos livros indicados: ‗Os santos

que abalaram o mundo‘ e outro, um livro jesuíta. As ‗qualidades morais‘ apontadas ao

médium João foram: amigo, ‗pai‘, ‗porto seguro‘, caridoso e missionário.

Isto posto, como já explicitado, à guisa de conclusão da representação dos

FC sobre João de Deus, levando em consideração as categorias de Lakatos e Marconi

(2003), a saber: validade, relevância, especificidade e clareza, profundidade [incluindo

a intensidade emocional], extensão e qualidade moral.

No que tange à ‗validade‘ – devido à análise entre convergências e

divergências de todas as respostas sobre o médium –, ou seja, a comparação entre

tais respostas e a fonte externa – a observação de João de Deus, dos frequentadores

da Casa e das bibliografias consultadas – sustenta-se na ausência de dúvidas que os

FC têm sobre a conduta do médium, ou seja, de modo geral, as pessoas que se

aproximam dele possuem admiração pelo trabalho do mesmo, constatam sua

seriedade e compromisso e, diante disso, passam a frequentar a Casa. Como visto,

todos esses FC trabalham e frequentam

,

há muito tempo a Casa; eles laboram todas

às quartas, quintas e sextas-feiras, assim como João de Deus.

Na categoria ‗relevância‘, a observação e a análise transparece em vários

aspectos, mormente, em novos sentidos e significados de vida recebidos após as

pessoas comparecerem à Casa e tornarem-se aprendizes de João de Deus. De modo

geral, eles afirmam que não apenas foram curados, mas ganharam um sentido

profundo e uma ‗razão de vida‘. Todos esses FC ajudam na Casa, em todas as frentes

que se fazem necessárias, seja próximo ao João de Deus em Entidade, na feitura ou

na distribuição da sopa, na sala de intervenções, na corrente, no palco, ou em outro

ambiente. Desta forma, esse sentido não se reduz à cura, mas se amplia a um

processo de tratamento espiritual; um aprimoramento de si mesmo, talvez uma

‗autointervenção moral‘, dando importância não somente ao pensamento, mas

igualmente ao sentimento vivenciado, seja para estreitar sentimentos benéficos entre

‗pais e irmãos‘ ou criar laços entre seres mais e os menos espiritualizados. A

simbologia não se restringe às palavras e compreensões; ela é maximizada e

materializada nas ações vivenciadas.

A categoria ‗especificidade e clareza‘ se sobressai também quando, em

determinados ambientes, João de Deus se destaca como mentor; a exemplo pode-se

144

citar no aeroporto, na Casa e nas redondezas da mesma, em que a caridade do

médium contribui com a municipalidade. Sua benevolência não se faz somente com a

doação de materiais escolares ou com a contratação de dentistas para pessoas

carentes, pois o médium também efetua pagamento de mensalidades de cursos

universitários para algumas pessoas. Uma característica regular entre os FC é encarar

a Casa como escola – mesmo compreendendo-a como hospital espiritual – tendo

João de Deus como professor e propiciador de aprendizagens na prática. A felicidade

sentida na Casa é motivo de não a tirar da mente e razão para permanecer ali. O

trabalho do médium se destaca não apenas pelo que ocorre no lugar, mas pela sua

dedicação missionária, mesmo não podendo se dedicar integralmente à sua própria

família. Talvez esse compromisso messiânico estimule nos FC recordações e

comparações simbólicas sobre os santos da igreja católica e outros símbolos bíblicos,

inclusive incitando leituras espiritualistas.

No que se refere a categoria ‗profundidade‘, focada na intensidade emocional

e na reposta à pergunta sobre a representação do médium, evidenciou-se em sete

dos oito entrevistados, revelando regularidade. De certo modo, houve manifestações

como olhos lacrimosos a fortes contenções emotivas na lembrança investida.

Surgiram vozes embargadas, silêncios emotivos, alegria por participar da Casa como

escola, por praticar experiências, por sacrifícios durante anos, conseguindo sucesso,

por nutrir afetos de amizade e paternidade ao médium João, desejando, ademais, que

muitos outros possam usufruir dessas situações. Por fim, destaca-se a indignação que

um FC manifestou pela renitência e traição de outros. É conveniente ressaltar que

essa categoria se relaciona com a ‗extensão‘, assim como se conecta com outros

entre si.

Quanto à categoria ‗extensão‘, aponta-se a regularidade dos FC desejarem

ampliar os benefícios sentidos e conquistados para outros seres humanos, mas não

somente para serem curados de possíveis doenças, mas de transporem limites

instintivos, extinguindo débitos e vivendo liberdades jamais sonhadas. Eles desejam

que todos cumpram suas próprias missões. De certo modo, com suas devidas

limitações, os FC carregam a bandeira que o médium conduz, mesmo sabendo que

podem ser alvos de ataques. Reiteram que João de Deus não serve [ou servia] a uma

classe financeira, nem étnica, muito menos sexista, mas a toda a humanidade, exceto

a quem não queira. Afinal, dizem, tendo por pressuposto a reencarnação, todos os

seres estão nas sendas evolutivas.

145

Eis as ‗qualidades morais‘ destacadas que os FC apontam sobre o médium:

retorno da esperança (FC1); reafirmação do objetivo de vida (FC1); pequena luz na

escuridão (FC1); forte (FC2); corajoso (FC2); humilde (FC2); amoroso (FC2, FC4 e

FC6); inteligente (FC2); simples (FC3); carinhoso (FC3), atencioso (FC3), filantropo

(FC3); caridoso (FC3, FC4 e FC8); dadivoso (FC3); trabalhador (FC3); abnegado

(FC3); missionário (FC3, FC5, FC7 e FC8); bravo (FC4 e FC6); belo (FC4); emotivo

(FC4 e FC7); bondoso (FC4); companheiro (FC4); fraterno (FC5), amigo (FC5, FC7 e

FC8); dedicado (FC5); iluminado (FC6), poderoso (FC6), líder (FC6 e FC7), confiante

(FC6); ‗pai‘ (FC8); ‗porto seguro‘ (FC8). Nesse contexto, faz-se importante salientar

que afora a qualidade de ‗bravo‘, aparentemente no sentido negativo da personalidade

do médium, todos as outras 31 peculiaridades são positivas e denotam grande

afetividade investida à imagem do médium.

Ao examinar essas qualidades morais, observa-se que a braveza não é

repetida entre os discursos dos FC, como se evidenciasse certa naturalidade ao

expressar essa emoção, visto a necessidade da circunstância pontual. De outro modo,

a característica ‗poderoso‘ – que o FC6 apregoa – emerge de forma discrepante com

as demais respostas dos FC, como apontado anteriormente; possivelmente, estes se

assentam no pressuposto de que o médium é apenas um instrumento do real poder,

que ele não tem poder algum, sendo um ser humano comum no dia a dia.

Desta maneira, para os FC, participar da experiência que João de Deus

proporciona é um acontecimento pleno de experiências inusitadas, marcantes e

repletas de lições intelectuais e morais. Por conseguinte, a Casa é concebida como

escola espiritual, além de hospital aos necessitados. João de Deus parece viver um

pouco essas qualidades morais: ―eu continuarei a servir de instrumento para curas

espirituais enquanto desempenhar a missão com amor e dedicação‖ (apud GARCIA,

2013, p.148).

Por fim, defronte à realidade das respostas dos FC sobre o médium e da força

destas, apresenta-se uma descoberta de análise: ‗tipos de relacionamento que os FC

têm com o médium‘. Tais relações estão além ou aquém da afetividade, seja

recebendo a visita do médium na própria residência do FC ou não possuindo,

visivelmente, nenhum afeto; contudo, elas parecem ser acontecimentos corriqueiros,

algo que adentra a intimidade. Ao conversar com uma FC, residente no sul do país,

esta informou que seu filho, precisando de emprego, viajou à Casa para solicitar

auxílio a João de Deus. A Entidade disse-lhe que voltasse para sua cidade e

146

esperasse em casa, pois iria mandar alguém procurá-lo. ―Não demorou um mês, um

senhor apertou a campainha e perguntou a meu filho se gostaria de ir trabalhar na

capital do Brasil com um político. Isto faz mais de três anos e meu filho está morando

em Brasília até hoje‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 21.06.2018).

Tais experiências com o médium geram ao seu redor certa áurea de profeta,

como a de predizer, o que é possível observar na fala do FC4: ―filho, se você tivesse

ficado onde você tava [em São Paulo], você tinha sido atropelado ou estava na cadeira

de roda‖, ou na expressão do FC2: ―Agradeço a espiritualidade que está nos guiando‖.

Aparentemente, são casos isolados de obediência ou certa vidência, porém, ao

aprofundar as pesquisas, notou-se que perguntar ao médium assuntos íntimos, ou de

certo modo inabituais, vê-se que isto é algo cobrado e incentivado por outros FC.

Desta forma, é fácil perceber que muitas ações dos FC, antes de serem tomadas, são

consultadas pelos mesmos com a Entidade, pedindo permissão ou opinião para, por

exemplo, namorar fulano[a], comprar um carro, mudar de casa, cursar determinado

curso universitário, fazer uma viagem, mudar de emprego e outros (DIÁRIO DE

CAMPO, 22.06.2018). Certa vez, disse a palestrante: ―as Entidades ajudam muito, vão

trabalhar nos nossos negócios, relacionamentos e outras frentes

,

para termos

equilíbrio‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 21.06.2018).

Logo, os frequentadores e os FC estabelecem vários tipos de relacionamento

com o médium. Não se trata apenas de assuntos referentes à cura de doenças, mas

de espiritualidade, emprego, ‗coisas do coração‘, passeios, negócios e outros; as

relações ocorrem pessoalmente, com a presença de João em sua residência ou

diretamente na Casa. Por outro lado, a Entidade, ao atuar nos negócios, pode sugerir

que há na Casa uma preocupação com a felicidade da pessoa como um todo, não

somente de bem-estar físico, mas subjetivo, denotando prosperidade de modo geral.

Desta forma, mesmo sendo vários tipos de relacionamentos, todos parecem fortalecer

um vínculo comum. Aqueles que estão há muito tempo ao lado do médium, como os

FC, são dependentes de João de Deus, revelando, por conseguinte, certa sujeição a

ele, pois João é concebido não somente como médium, mas como autoridade

profética e iluminada. Os FC rendem-se a ele porque se sentem cuidados, tutelados

por Deus.

À vista disso, fica evidente que inúmeros símbolos atribuídos ao médium,

como pai, irmão, amigo, missionário, amoroso, profeta ou outro, são efetivados na

objetivação de diversos tipos de relacionamentos que os visitantes e os FC mantêm

147

com ele. A linguagem surge assim construindo objetivações nos relacionamentos,

exteriorizações e internalizações de afeto sincero e fervoroso. Provavelmente, a

intensidade emocional, conectada às qualidades morais sobre o médium, baliza as

imagens construídas aprazivelmente sobre ele. Mesmo não havendo hierarquia

ditatorial na Casa, as relações se estabelecem como pai-filho[a], professor-aluno[a],

iluminado-iniciante e outras de mando-obediência, fornecendo a João de Deus o

status de dirigente na vida pessoal dos FC e na Casa. Isso considerando que cada

pessoa, a seu modo, conhece suas próprias experiências, intimidades, limitações e

perspectivas.

Tal descoberta denota os sentidos e significados que os FC possuem acerca

do trabalho espiritual realizado com João de Deus, nos direcionamentos de sua vida,

seja sobre intervenção espiritual, vida amorosa, financeira ou sobre outro assunto

importante. Os FC não apenas acreditam, mas creditam toda sua força interior no

médium, em suas objetivações e interiorizações, expressas nas externalizações

veiculadas na Casa ou fora dela.

Sobre as acusações sexuais contra João de Deus pouco interferiram nas

verbalizações objetivadas dos FC entrevistados. Se não, veja-se. Sobre o assunto em

questão, foi questionado por duas vezes, em dias diferentes, o que eles pensavam

sobre o médium João de Deus, diante das denúncias de abuso. Três FC nada

responderam, preferindo o silêncio. O FCa45 disse: ―neste momento, com uma

investigação policial em curso, seria inapropriado comentar. Estou assistindo tudo isso

pelas notícias, igual a você‖. O FCb, depois da segunda insistência, redarguiu:

―agradeço as Entidades de luz pela minha cura‖. A FCc admitiu que somente poderia

falar algo ―depois que me for provado‖ e expressou reconhecimento: ―continuo a te

dizer que tenho eterna gratidão e jamais pagarei o que recebi na Casa de Dom Inácio‖.

A FCd apontou: ―eu só posso dizer o que conheço, e o que tenho visto todos esses

anos são vidas transformadas pela intercessão das Entidades. As curas da Casa são

comprovadas e o restante não tenho conhecimento‖. Como visto, esses FC estão há

muitos anos ao lado do médium João e trabalhavam cotidianamente com ele – antes

de sua prisão.

45 Deixou-se tais respostas dos[as] FC como anônimas; devido à sua possível identificação entre os

mesmos. Usar-se-á letras minúsculas do alfabeto para diferenciá-los[as], sabendo que tal ordem é

aleatória, não coincidindo com a ordem numérica utilizada.

148

Com relação aos pronunciamentos dos FC acerca dos trabalhos realizados e

do comportamento do médium, é relevante destacar que foi deixado por último o

pronunciamento do FCe por ser considerado o mais extenso e o mais intenso. Esse

FCe inicia a entrevista lacrimoso [...], logo em seguida informa que estava relutante

em conversar, mas aceitou [...]. Ele avisa que houve certo envaidecimento e ganância,

por parte de João, a partir de 1995, não somente por causa do fim das garrafadas e

do início da cobrança da passiflora, mas pela entrada maciça dos estrangeiros, pois

trouxeram muito dinheiro, já que desejavam ambientes aconchegantes na Casa:

―antes, na Casa, era tudo simples: bancos, paredes; depois a coisa cresceu como

fermento‖ (FCe). A cobrança pela passiflora foi justamente ―porque muitas pessoas

não valorizam quando ganham algo, mas se você cobra, mesmo que cinco centavos,

ela sai feliz, contente porque pagou barato e faz uso correto‖. Assim, ―a procura

passou a ser grande demais, então a oferta teve que acompanhar‖. Sobre a dedicação

do médium, ele relembra: ―você sabe o que é ficar incorporado das 6h da manhã até

às 22h socorrendo? Lembro que no sul do Brasil, o médium acordava às 5h e atendia

até à 01h. Se ele tinha 20h por semana para ele como pessoa era muito‖ (DIÁRIO DE

CAMPO, 08.01.2019, grifo de ênfase). Esse FCe ainda recorda de quando saiam

juntos: ―Antes dos estrangeiros, ele ia às pousadas com a gente, falava besteira,

caçoava alegremente dos outros, era bastante carnívoro e divertido. O João de Deus

de hoje é bem diferente, quase não tem tempo para nada e é bravíssimo‖.

Sobre as acusações contra o médium, o FCe alega que ―João de Deus nunca

fez voto de castidade como Chico Xavier ou Divaldo Franco. Ele é um homem que

gosta de mulher, e um homem que tem uma missão maravilhosa‖. O médium

assediava? ―Ora, bem o contrário. As mulheres o assediavam. Várias vezes

chamamos a esposa dele para vir aqui [na Casa] intimidar as outras que davam em

cima dele‖. Segundo este FC, algumas mulheres o acusam de colocar a mão no seio

delas: ―ora, você já viu um médico ter pudor? Existem vários vídeos da Casa de

mulheres com peito de fora para serem operadas justamente numa região próxima‖.

E continua fazendo as pessoas rememorarem que nos hospitais, frente a

intervenções, é comum os pacientes estarem nus por baixo de uma simples camisola:

Uma vez, um senhor de uma religião peruana veio aqui, com uma

túnica até os pés, mas queria cirurgia visível. O médium levantou a

túnica – mas o homem estava nu por baixo, todo mundo viu seu pênis

– e começou a operá-lo normalmente próximo ao umbigo. Até que veio

alguém e cobriu com lençol suas partes íntimas. Se tem que fazer uma

149

cirurgia naquela área, a Entidade naturalmente vai lá e faz (DIÁRIO

DE CAMPO, 08.01.2019, grifo de ênfase).

Em relação a falibilidade humana, esse FC asseverou a existência de vários

vídeos mostrando o médium dizer: ―‗eu sou um homem endividado‘ [...]. A própria

mediunidade é muitas vezes dada aos que mais têm débito a resgatar‖. Mesmo o João

―sendo 20% homem e 80% Entidades‖ [sic] (DIÁRIO DE CAMPO, 08.01.2019), ainda

há impulsos básicos humanos prevalecendo.

Acerca de sua inconsciência, o FCe complementa: ―o médium disse esses

dias que não lembra das mulheres [em seu depoimento ao Ministério Público]. E não

lembra mesmo, porque eram as Entidades que operavam‖. E sobre as Entidades na

vida do médium, muitas chamavam a atenção dele no palco da Casa, mandando

recado por outra pessoa: ―fulano, avise o médium João para ele tomar cuidado com a

fama e a notoriedade que os artistas trazem. E também lhe diga para maneirar no

chocolate e nas carnes. Mas o senhor João não gostava nada desses recados. Comia

de tudo‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.01.2019).

Para terminar, o FCe faz comentários sobre a Casa e sobre a forte seleção

que acontece, diante dos últimos fatos. ―A Casa não é um bem pessoal do médium,

para tristeza de muitos que querem fechar esse lugar, como religiosos de interesses

opostos e outros. Aqui muita cura aconteceu e acontece. A Casa

,

É importante destacar que essas três intervenções acontecem sem

anestesia e ou assepsia, e geralmente as pessoas não reclamam de dor. Faz-se notar

ainda que as intervenções 2 e 3 são para amplas enfermidades ou doenças, desde

depressão ou ansiedade até câncer ou tumor cerebral. Porém, a decisão por uma ou

outra cabe ao médium ou Entidade, e ninguém na Casa conhece precisamente o

motivo pela escolha.

Sobre os sentidos e significados que os assuntos estimulam, é habitual

compreendê-los não somente como antecessores das atitudes, mas inclusos em uma

ampla visão da existência. Portanto, os sentidos e significados dizem respeito ao

ethos e à visão de mundo que a pessoa interiorizou através das relações sociais. Tais

sentidos e significados são expressos em signos por meio dos enunciados da

linguagem. Assim, se os sentidos e significados direcionam entendimentos e

comportamentos, faz-se necessário conhecer e interpretá-los a partir dos[as]

Filhos[as] da Casa, investigando sobre as intervenções espirituais e se tais sentidos

e significados se resumem em si mesmos ou possuem amplas relações de sentidos

de vida. De antemão, perceber que os[as] Filhos[as] da Casa entrevistados saíram de

suas cidades de origem e fixaram residência próximo à Casa de Dom Inácio revela

consideráveis sentidos e significados; sendo eles o foco maior desta tese.

Por fim, o espiritismo será analisado com mais profundidade, visto ser,

possivelmente, a única via de entendimento etológico do ethos e das visões de mundo

dos[as] Filhos[as] da Casa. Esse aspecto da pesquisa se desdobrou em outras

inquietações: será que os[as] Filhos[as] da Casa são espíritas? Se a Casa prega

alguma religião, seria ela o espiritismo? Até que ponto o espiritismo explica os

fenômenos que acontecem na Casa de Dom Inácio? O que o fluido vital interfere

19

nesses fenômenos? Como os espíritas entendem a relação do binômio saúde-

doença? Assim sendo, através do exercício do olhar [ver] e do escutar [ouvir], impôs-

se ao presente pesquisador um distanciamento de suas pré-noções culturais para se

situar internamente ao fenômeno da Casa, por meio de participação efetiva nas

formas de sociabilidade na mesma. À vista disso, toda a nomenclatura adotada pelo

espiritismo, seja ‗água fluidificada‘, ‗reencarnação‘, ‗débitos de vida passada‘,

‗espírito‘, ‗perispírito‘ e outras, ou expressões do contemporâneo espiritualismo

denominado Nova Era, como ‗carma‘, ‗alinhamento energético‘, ‗ressonância‘, ‗banho

de cristais‘ e outros, são termos igualmente assumidos pelos depoentes entrevistados,

e como tal comparecem nessa tese. Tais expressões formam a constelação temática

para melhor circundar o objetivo do presente trabalho.

Da mesma maneira, na explicação etiológica da antropologia, adentrar-se-á

na análise do efeito placebo e da eficácia simbólica. Sabe-se que estas são muitas

vezes consideradas veemente na argumentação científica como explicação de tais

fenômenos, em uma conexão entre símbolos que não só moldam a interpretação, mas

que igualmente constroem a performance da experiência. Assim, de acordo com Lévi-

Strauss (1967), o médium fornece o mito e o doente realiza as operações mentais.

Visando a esses objetivos, este estudo de natureza qualitativa abrangeu a

pesquisa bibliográfica e a etnográfica que se inter-relacionam com vistas à

compreensão e ao exame do objetivo explicitado. No que se refere à pesquisa

bibliográfica expressa, percorreu-se todo o processo de estudo e elaboração

explorado na tese. O referencial teórico balizou o levantamento da produção

acadêmico-científica de dissertações e teses mormente sobre curas espirituais e

espiritismo, bem como livros publicados sobre a Casa de Dom Inácio ou João de Deus

– muitos encontrados na livraria da Casa –, artigos, sites existentes sobre a

constelação temática – esses oriundos principalmente de universidade públicas como

a USP, a UFJF e outras.

No que tange à pesquisa etnográfica – por facultar o afastamento de

interpretações a priori, focar descrições mediante as coisas ou objetivações da

coletividade cultural, propiciar uma interação direta ou observação participante e

possibilitar uma abordagem heurística preocupada com a análise das objetivações

(CHIZZOTTI, 2006; LAPLANTINE, 2003) –, esta suscitou obter a visão dos[as]

Filhos[as] da Casa sob vossa ótica [acautelando-se sobre a tradução do ‗outro‘],

perscrutando as reuniões, os atendimentos, os rituais, a livraria, o refeitório e outros

20

espaços ou acontecimentos da Casa. Salienta-se que a observação direta perdurou

por três anos [fevereiro de 2016 a fevereiro de 2019] porém, a pesquisa etnográfica

propriamente foi realizada em doze meses [julho de 2017 a julho de 2018]. Nessa

perspectiva etnográfica, apontando um distanciamento do pesquisador e buscando

respostas sobre os sentidos e significados dos[as] Filhos[as] da Casa sobre as

intervenções espirituais, optou-se pela entrevista narrativa em profundidade, não

somente por ser uma forma de comunicação mais profícua, mas por evidenciar os

signos que produzem mudança e motivam ações dos portadores das reflexões

(BENJAMIN, 1993). No processo de entrevistas, em conversa com um Filho da Casa,

que trabalhava dando assistência direta ao médium, foi solicitado que o pesquisador

procurasse João de Deus em Entidade para autorizar a realização das 8 entrevistas

narrativas em profundidade. O médium em Entidade autorizou o pesquisador e

também indicou quem seriam os[as] Filhos[as] da Casa participantes da entrevista;

portanto, a escolha dos sujeitos não se deu de forma aleatória, mas a partir de uma

nomeação direcionada. Para o desenvolvimento desse trabalho, utilizar-se-á a

abreviação ‗FC‘, significando Filho[a] da Casa, para os entrevistados. Estes foram

elencados na ordem sequencial das entrevistas: FC1, FC2, FC3, FC4, FC5, FC6, FC7

e FC8. Todas as entrevistas narrativas foram feitas a partir de um roteiro norteador,

gravadas, posteriormente transcritas e enviadas aos entrevistados para correção ou

complementação.

Como se percebe, a presente tese posiciona-se no marco teórico

hermenêutico, sendo a facticidade inerente à interpretação; esta não se origina neutra,

evidenciando as compreensões carregadas de interpretações sociais, junto às

experiências que o próprio observador possui de sua existência, seja como estudioso

do espiritismo ou tendo nele certa convicção de princípios, junto a uma postura crítica

necessária à ciência. Desta forma, não se trata de uma existência distante de intuições

essenciais, mesmo que provisórias, como sustentava Heidegger (2012), mas de algo

que se aproxima de Vattimo ao anunciar o ―creio que creio‖ (2004). Aparentemente

incompatível, Vattimo explica que o primeiro crer trata-se de acreditar em algo de que

não se tem tanta certeza, ou seja, uma crença incerta. Já o segundo indica um

pensamento convicto e certo. Contudo, pergunta-se: como pode haver uma crença

incerta que tem certeza? Infere-se não se tratar de saber que se desconhece a

exatidão de simples crença, mas de que a crença de modo geral está em terreno

incerto. Embora imediatamente pareça incoerente, o ‗creio que creio‘ abre portas para

21

entender os pressupostos hermenêuticos desse filósofo italiano e outros assuntos.

Dessa forma, se as crenças são concepções humanas, Vattimo questiona se são tão

certeiras e seguras. Tais crenças são expressas igualmente em sentidos e

significados que o indivíduo traz consigo.

À vista disso, tem-se por objetivo geral entender e analisar os sentidos e

significados dos[as] Filhos[as] da Casa advindos de intervenção espiritual, realizada

por João de Deus em Abadiânia/GO; e como objetivos específicos emergem a

compreensão da mediunidade de João de Deus e a especificidade da concepção de

saúde-doença para o espiritismo. Esses objetivos foram abordados nos capítulos, nos

quais

,

tem poder dado por

Deus‖. Sobre o desagregar: ―vivemos um momento de separação do joio do trigo‖.

Provavelmente grãos de trigo que a espiritualidade demorou para ajuntar: ―as

Entidades sempre colocaram os irmãos em rede, uma rede de ajuda mútua e fraternal,

um tecido grande de amor e poder. Laços que ajudam e funcionam. Agora,

simplesmente alguns FC estão virando as costas e indo embora‖.

Trata-se de uma etapa de apartar os que estão com receio de usar roupa

branca nas ruas, por exemplo – ―por medo de serem achincalhados na rua, alguns

estão trazendo as roupas brancas em sacolas e trocando de roupa aqui na Casa. Eu

não, estou dando minha cara à tapa; uso branco‖. Para ele, nesta fase inquieta,

―percebo quem está acordado e quem não está; quem está atrasado e aquele que

está vivendo. Trata-se de separar o interesse pequeno, o materialista, o falso poder.

No entanto, cada um seguindo seu caminho‖. Inclusive, doenças que haviam sido

curadas pelo médium estão retornando: ―ora, eu mesmo passei por isso. Fiquei

atribulado e meu sintoma antigo voltou, fiquei temeroso. Reli a Fisiologia da alma de

Ramatís, reestudei o espiritismo e fui me acalmando‖. Ele garante que somente

150

quando o médium apareceu na Casa ―naquela quarta-feira‖ [12.12.2018, grifo de

ênfase] dizendo que ele tinha de cumprir a lei brasileira ―e colocou a imagem da Santa

Rita na sua cadeira, então minha dor sumiu. Ali percebi que eu devia me atrelar a

Deus, e não à pessoa do médium. Quem atrela sua cura ao médium, a doença volta.

Devemos nos atrelar a Deus‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.01.2019).

Diante das opulentas informações fornecidas pelo FCe e do foco de entender

seu pensamento sobre as acusações sexuais contra João de Deus, é possível notar

que ele afirmou ser o médium falível como outro humano qualquer, provavelmente,

por ter certa vaidade e ganância e por nunca ter feito voto de castidade como alguns

quadros do espiritismo; João Teixeira de Faria é considerado um indivíduo simples,

porém com a particularidade da mediunidade. Contudo, o FC em questão ressalta que

João de Deus não assediava as mulheres, mas o contrário, elas o assediavam. Desta

forma, nota-se que nenhum dos FC asseverou inocência do médium ou perseguição

injusta. Somente o FCe tocou em seu nome. De modo geral, todos os FC deslocaram

como foco o poder espiritual na e da Casa, independente do médium João.

Aparentemente, esse lugar se revelou ‗o‘ lugar sagrado, espaço de peregrinação,

afinal, afirmou a FC8: ‗as curas da Casa‘, como se a Casa fosse não só o lugar da

cura, mas a causa da cura, sendo lá que se reúnem os espíritos de tratamento e

restauração. Ressalta-se que ‗local sagrado‘ não aconteceu com Zé Arigó, nem com

outro médium conhecido; quando eles se foram, o trabalho acabou.

Logo, diante do exposto neste capítulo, foi possível notar as objetivações da

Casa de Dom Inácio, seus inúmeros trabalhos e contribuições aos frequentadores.

Igualmente, constatou-se que a Casa é fruto das objetivações de João de Deus, ao

longo de sua história de vida, e de como os FC se juntaram a ele, em retribuição,

como sinal de gratidão pelas curas alcançadas; a maioria inclusive, sete dos FC, se

mudaram próximo à Casa, distanciando-se de suas cidades natais, parentes e

familiares. Todo o movimento de João de Deus, o qual aglutina a construção da Casa

e a reunião dos FC revela que a tríade dialética de objetivação, exteriorização e

interiorização proposta por Berger e Luckmann (2013) se efetiva não somente na

objetivação da Casa, mas nas subjetividades e materializações expressas na cultura

como um todo.

Entretanto, tudo isso tem como alicerce basilar a linguagem, responsável por

exteriorizar as internalizações e propiciar objetivações, em um ciclo interminável.

Como os simbolismos também foram propiciados pela linguagem – que por sua vez

151

são da mesma forma simbólica – eles constroem cadeias de percepção e blocos de

realidade na união de imagens, dentre as quais muitas passam a ser vivenciadas.

Nesse contexto, os símbolos religiosos, de modo semelhante, constroem realidades

sagradas, ‗intocadas‘ pelo profano; o poder do ritual religioso, revelando forças

misteriosas e poderosas, expressa-se na rememoração constante deste, despertando

também sentimentos de veneração e respeito.

Desta forma, os sentimentos religiosos dos FC, mesmo sendo interiorizados,

são observados na doação de tempo e trabalho destes a quase tudo na Casa, seja

ajudando o médium na organização das filas ou buscando algum objeto necessário

para ele; dando palestra, aplicando passes magnéticos, orientando pessoas nos

múltiplos espaços, buscando e distribuindo água fluidificada, traduzindo línguas

estrangeiras [inglês, francês e alemão], cuidando dos enfermos, abraçando seus

iguais ou ‗desconhecidos gratos‘, mantendo asseado o ambiente, dando seus

depoimentos, produzindo sopa e servindo-a com largos sorrisos; por fim, são

incontáveis doações dos FC para a mesma. Como disse a FC8: ―eu tenho tanta

gratidão que eu acho que em uma encarnação assim eu não consigo expressar tudo

e agradecer‖.

Entretanto, tudo o que acontece na Casa está envolto à mediunidade de João

de Deus, o único autorizado a receber Entidades. Mas o que é mediunidade? Qual

ciência pode explicar tal fenômeno? Dentro de sua filosofia, qual seu ethos e visão de

mundo? Além dos rituais diferentes, a Casa pratica o espiritismo ou o espiritualismo?

Qual a concepção de espiritualidade para os FC e como ela se dá no seu cotidiano?

Estes e outros questionamentos serão vistos em profundidade no próximo capítulo, o

qual, apesar de estar distante de apresentar respostas conclusivas, apontará

possíveis perspectivas teóricas sobre tais indagações.

152

CAPÍTULO II – SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO ESPIRITISMO

Toda a nossa ciência comparada com a realidade, é primitiva e infantil –

e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos.

Albert Einstein

Diante do objetivo de compreender e analisar os sentidos e significados dos

FC, advindos das intervenções espirituais realizadas por João de Deus, a finalidade

do presente capítulo é conhecer o espiritismo. O intuito não é somente distinguir as

práticas da Casa, pois muitos a concebem e divulgam-na como um centro espírita –

apesar de não o ser –, como forma de explicação da mediunidade de João de Deus,

mas entender o ethos e visão de mundo dos FC. No entanto, questiona-se: os FC são

espíritas ou espiritualistas?

O capítulo inicia-se pelas definições de sentido e significado que são

assumidos neste trabalho, procurando evidenciar suas relações com a kénosis no

sentido kierkegaardiano. Assim, explorar-se-á a concepção de espiritismo e se o

mesmo é religioso – como é entendido comumente pela Casa de Dom Inácio. No

entanto, seria o espiritismo uma religião? Ethos religioso e a visão de mundo

propostos por Geertz (1989) são os próximos itens da investigação, juntamente às

objetivações dos mesmos pelos FC, isto é, de como estes vivenciam suas

compreensões de ordem geral, expressas em seus atos na Casa.

Sequencialmente, será verificado o entendimento de Allan Kardec sobre

mediunidade – considerada elemento basilar do próprio espiritismo – os tipos desta e

a diferença entre mediunidade espírita e médiuns curadores, pois de acordo com

Kardec, esta é a capacidade do médium João de Deus.

Enfim, como os FC não seriam FC sem as intervenções espirituais que João

de Deus realiza, busca-se compreendê-las através de estudos etológicos e

etiológicos, ou seja, o entendimento da intervenção espiritual pelo espiritismo e pela

antropologia.

2.1 Sentidos e significados

Geralmente, no decorrer das pesquisas, é comum definir significados, partir

de pressupostos, traçar metodologias tradicionais ou inovadoras, levantar hipóteses

alicerçadas nos valores do estudo – contextualizados no momento histórico – e buscar

,

se expõem os dados colhidos em campo, intercambiando, em um movimento

dialético, pesquisa empírica e pesquisa bibliográfica.

O primeiro capítulo apresenta a Casa de Dom Inácio, João de Deus e os[as]

Filhos[as] da Casa. Essa exposição ocorre tendo como pano de fundo a teoria da

relação dialética entre objetivação, exteriorização e interiorização (BERGER, 1985;

BERGER E LUCKMANN, 2013), junto à análise da linguagem na construção de

simbolismos (ELIADE, 1991; RUIZ, 2015). Questiona-se, nesse capítulo, se a Casa

de Dom Inácio e os[as] Filhos[as] da Casa são frutos das objetivações de João de

Deus. Constatar-se-á também se a linguagem exteriorizada e interiorizada –

juntamente aos outros simbolismos na Casa – constrói realidades sagradas, bem

como se os[as] Filhos[as] da Casa doam seu trabalho simplesmente por gratidão.

Como a Casa de Dom Inácio e tudo o que foi objetivado, exteriorizado e

interiorizado está envolto à mediunidade de João de Deus, o segundo capítulo trata

dos sentidos e significados do espiritismo e da mediunidade. Desta forma, busca-se

entender e analisar o que os sentidos e significados dos[as] Filhos[as] da Casa

possuem relacionados com o espiritismo. Para tal intento, não somente se apresenta

a teoria de Geertz (1989) sobre ethos e visão de mundo, bem como são analisadas

as compreensões de ordem geral sobre os pensamentos e atitudes dos[as] Filhos[as]

da Casa, que se assemelham à kénosis no sentido kierkegaardiano. Por fim, como

os[as] Filhos[as] da Casa não são considerados[as] Filhos[as] da Casa sem as

intervenções espirituais que João de Deus realizou, almeja-se compreendê-las

através de estudos etológicos do espiritismo (KARDEC, 1998a e 2013a) e etiológicos

da antropologia (GREENFIELD, 1999).

O terceiro capítulo concentra-se na centralidade desta tese, isto é, entender e

analisar os sentidos e significados dos[as] Filhos[as] da Casa advindos das

22

intervenções espirituais, realizadas por João de Deus em Abadiânia/GO; para tanto,

evidenciam-se as vozes dos[as] Filhos[as] da Casa sobre as intervenções espirituais

e examina-as. Outrossim, faz-se necessária a compreensão do processo saúde-

doença para a religião, mais particularmente para o espiritismo, incluindo a concepção

de corpo físico. Verificar-se-á que desde as eras primeiras a religião tem tentado

aplacar o sofrimento humano; sendo Deus o bálsamo de muitas dores. A ciência –

mais especificamente através do modelo biomédico – também pretende minorar o

sofrimento humano, porém, sem muito sucesso, o que fortalece o caminho religioso.

Algumas pesquisas científicas (MOREIRA-ALMEIDA e STROPPA, 2008; KOENIG,

2015) vêm demonstrando que possuir crenças espiritualizadas, além de proporcionar

coping religioso, revigora os sistemas imunológico, endócrino e cardiovascular. Desta

forma, provavelmente, os sentidos e significados que os[as] Filhos[as] da Casa

adquiriram sobre as intervenções espirituais os ultrapassam, abarcando outras

compreensões.

23

CAPÍTULO I – CULTURA COMO CONTEXTO

Entra dentro de tua consciência e interroga-a. Não prestes atenção

ao que floresce à vista, e sim à raiz, que está na terra.

Santo Agostinho

Sendo o objetivo desta tese entender e analisar os sentidos e significados

dos[as] Filhos[as] da Casa advindos das intervenções espirituais, realizadas por João

de Deus em Abadiânia/GO, o propósito do presente capítulo é conhecer a Casa de

Dom Inácio, João de Deus e os[as] Filhos[as] da Casa. As três metas secundárias

são: a) compreender a teoria da relação dialética entre objetivação, exteriorização e

interiorização propostas por Berger e Luckmann (2013); b) analisar a linguagem

construindo simbolismos e; c) verificar as relações de ‗a‘ e ‗b‘ nas manifestações

objetivas e subjetivas da Casa de Dom Inácio.

Nesse contexto, a pesquisa inicia-se pelas definições de exteriorização,

objetivação e interiorização. A seguir, envereda-se ao escopo de descobrir as

manifestações de objetivação na Casa de Dom Inácio, local onde o médium João de

Deus atuava e de como os[as] Filhos[as] da Casa – sujeitos dessa pesquisa –

iniciaram e vivenciam as mesmas. Esse item, em específico, possui uma característica

sobretudo descritiva e contextual da Casa, ambiente empírico do presente estudo.

Na sequência, encetar-se-á uma discussão teórica e geral sobre as

externalizações, objetivações e interiorizações ocorridas na e pela cultura. Desta

forma, não será abordada somente a tríade dialética que Berger e Luckmann (2013)

propõem, mas também o espelho da constituição humana, da formação mental, de

sua maleabilidade sócio-histórica-antropológica e da construção da linguagem

formando simbolismos. Isto posto, no próximo item, revelar-se-ão as interiorizações

[composta de simbolismos] e externalizações dentro da Casa de Dom Inácio de

Loyola.

Por fim, em uma conexão precedente, será objeto de conclusão que não

existiriam os[as] Filhos[as] da Casa sem a Casa e, por conseguinte, não haveria esta

sem João de Deus. Logo, surge a relevância das objetivações na vida do médium

João e de como ele é visto por esses[as] Filhos[as].

24

1.1 Objetivação da Casa de Dom Inácio de Loyola

Berger e Luckmann (2013) entendem por exteriorização a contínua

manifestação do mundo nas atividades físicas e ou mentais dos humanos. Berger

(1985) concebe a objetivação como a execução dos produtos dessa atividade, física

e mental, ―de uma realidade que se defronta com seus produtos originais como

facticidade exterior e distinta deles‖ (BERGER, 1985, p.16). A interiorização ―é a

reapropriação dessa mesma realidade por parte dos homens, transformando-a

novamente de estruturas do mundo objetivo em estruturas de consciência subjetiva‖

(BERGER, 1985, p.16). Desta maneira, o foco deste item estará na objetivação da

Casa de Dom Inácio, especificadamente, em sua construção.

Em meados da década de 1970, João de Deus morava em Anápolis e, apesar

de proporcionar benesses a muitos, foi acusado de vários crimes como exercício ilegal

da medicina, charlatanismo e curandeirismo. Devido a isso, em permanente tensão

emocional, somando-se a sua personalidade irrequieta, a vida do médium João se

tornou insustentável na cidade.

Sendo pressionado por autoridades jurídicas e empresários – que haviam

passado por tratamento curativo com o médium – e ―reconhecendo que inexistia

ambiente para ele continuar em Anápolis, notadamente em razão da organização e

permanente oposição da classe médica‖ (GARCIA, 2013, p.45), Decil de Sá Abreu,

então prefeito de Anápolis, em conversa com o promotor Braz Gontijo, ex-prefeito de

Abadiânia, encontra um lugar para o médium atuar: Abadiânia, distante

aproximadamente 37 quilômetros de Anápolis. Conversaram com o prefeito dessa

cidade, Hamilton Pereira [hoje, administrador da Casa de Dom Inácio] que prometeu

apoio da prefeitura para sua instalação.

Atualmente, é comum dizer e ouvir que Abadiânia depende comercialmente

da Casa de Dom Inácio e se um dia o médium vier a faltar, a região em torno de onde

se localiza a Casa morrerá, como relatou a proprietária de uma pousada (DIÁRIO DE

CAMPO DO AUTOR DESSA TESE1, 22.06.2018). Localizada entre duas capitais,

Brasília [a 118 quilômetros] e Goiânia [a 104 quilômetros], cortada pela rodovia federal

BR-060, Abadiânia foi antes distrito de Corumbá de Goiás, sendo emancipada em

1953. Posse, antigo nome da cidade, fora fundada como povoado em 1874 por Dona

Emerenciana, devota de Nossa Senhora da Abadia, que, em volta de uma capelinha

1 Doravante, DIÁRIO DE CAMPO.

25

de pau-a-pique, organizava festas e romarias em homenagem a Nossa Senhora da

Abadia, padroeira da cidade. Desta forma, Abadiânia é ―topônimo em louvor à

Padroeira Nossa Senhora da Abadia‖ (BRASIL, IBGE, 2007). Também é comum

relatar que o ‗ânia‘ de Abadiânia, vem da fundadora, Dona Emerenciana, tamanha sua

influência

,

na história (SAVARIS, 2013).

Assim, desde a origem, a cidade é centro de romarias. As modernas

acontecem organizadas pela igreja católica local em festas dedicadas à Nossa

Senhora da Abadia, e pelos frequentadores da Casa de Dom Inácio, vindos de várias

partes do Brasil e do mundo. ―Goiás pode, então, ser considerado um estado místico,

pois abriga cidades tipicamente espíritas, principalmente Palmelo e Abadiânia‖

(SAVARIS, 2013, p.22). Entretanto, apesar da Casa não ser considerada espírita, nem

a cidade, essa citação apresenta Goiás como um estado que abriga além dos locais

citados, a Cidade Eclética de Mestre Yokaanam e, a poucos quilômetros, no Distrito

Federal, o Vale do Amanhecer, surgido em 1969, com Tia Neiva. Todos esses lugares

possuem práticas mediúnicas e seguem alguns princípios espíritas; exceto Palmelo,

uma cidade, a qual pode se afirmar que é realmente espírita (SILVA NETO e

SIGNATES, 2015).

As primeiras atuações de João de Deus na cidade de Abadiânia foram

bastante precárias. Ele se estabeleceu em uma chácara com instalações escassas e

com uma demanda intensa de pessoas vindas de várias partes do mundo para

atender. Ao procurar por lugares melhores para se estabelecer, mudou-se para uma

antiga sorveteria, que também não apresentou os resultados esperados. Logo se

transferiu para uma chácara ―cedida por Domary José Jacinto2. Em volta da já

denominada Casa de Dom Inácio, começaram a surgir restaurantes, quiosques

improvisados e barracas de lona‖ (GARCIA, 2013, p.47). A Casa3 situa-se no Setor

Lindo Horizonte, exatamente na ―Avenida Frontal e após percorrê-la, passando por

diversas pousadas e lojas, já no seu finalzinho, na Quadra 48, [nº 823], CEP 72.940-

2 O senhor José Jacinto e sua esposa, acreditando no médium João, compraram uma área da Fazenda

Rio Claro e doaram uma parte para o médium se estabelecer. Com a ajuda do senhor José Jacinto,

que era pedreiro de profissão – e ex-prefeito da cidade –, se construiu o grande salão da Casa de Dom

Inácio. Sua visão empreendedora, levou José Jacinto a abrigar pessoas e alugar quartos de sua

residência, até que erigiu sua própria pousada ao lado da Casa (GARCIA, 2013).

3 A Casa de Dom Inácio de Loyola é normalmente reconhecida como Casa Dom Inácio, Casa de Dom

Inácio, Casa de João de Deus ou simplesmente Casa. Optou-se frequentemente pelo uso de ‗Casa‘ e

‗Casa de Dom Inácio‘ quando referir-se a ela.

26

000, está localizada a Casa de Dom Inácio, numa área de doze mil metros quadrados‖

(PÓVOA, 2016, p.81).

Quem sempre acompanhou e acompanha o médium João em seus percursos

e projetos é Expedito de Miranda, advogado [também visitou o médium curador Zé

Arigó na cadeia, na década de 1960] e professor universitário. Sobre as experiências

junto a João de Deus, Expedito atesta:

No início, o atendimento era prestado em uma pequena varanda,

à frente de uma pequena e velha casa, situada numa rua sem asfalto,

causando grande desconforto a todos pelas nuvens de poeira

provocadas pelo trânsito de veículos. Os móveis, além de poucos,

eram velhos e desconfortáveis, deixando muito a desejar.

Entretanto, apesar das precaríssimas condições e pela absoluta

falta de espaço, sem falar na campanha agressiva movida pelos

arautos do fracasso, excelentes resultados eram obtidos, de tal

maneira que a saúde era recuperada e a fé robustecida, ao mesmo

tempo em que o sentimento de gratidão se fazia refletir no alegre

semblante das pessoas.

As deficiências das instalações, a falta de espaço, a carência

dos móveis e a ausência de alvissareiras perspectivas aumentavam a

olhos vistos, na medida em que aumentava o número de

frequentadores.

Não obstante, tais dificuldades nada serviam para abrandar o

entusiasmo, arrefecer a dedicação de um médium que se encontrava

ciente da responsabilidade que lhe impunha tão importante missão.

No antigo endereço, as pessoas, cujo atendimento aconselhava

algumas horas de repouso, eram colocados em velhos e

desconfortáveis sofás, nos cantos de pequenos quartos mal arejados.

Enfim, faltava espaço para uma razoável acomodação dos

frequentadores, as instalações elétricas e sanitárias se mostravam

deficientes, em péssimo estado de conservação, mas nada disso foi

bastante para atingir a fibra de quem se sentia despreparado para

colher um insucesso.

Nessa fase, como se não bastassem as dificuldades de ordem

material, sobejavam as denúncias inquinando o médium João como

autor de crime de charlatanismo, curandeirismo e exercício ilegal da

medicina.

Por serem todas elas denúncias improcedentes, não surtiram o

resultado desejado por seus autores. Ao contrário, provocaram eficaz

divulgação da benéfica atividade da casa de Dom Inácio, o que

determinou considerável aumento de frequentadores (apud GARCIA,

2013, p.47-48).

Mesmo em meio a condições desfavoráveis, com um número crescente de

frequentadores, o primeiro atendimento feito em Abadiânia foi um parto, realizado pela

27

Entidade4 Dom Inácio de Loyola (GARCIA, 2013). Dada as condições, não demorou

muito tempo para que os frequentadores ajudassem com doações destinadas a

assegurar melhoria nas acomodações.

Atualmente, na Casa há as seguintes subdivisões: Secretaria; Salão; Sala de

repouso ou enfermaria; Sala dos Médiuns; Sala da Entidade; Sala de passes e

Intervenções espirituais; Filhos[as] da Casa; Passiflora; Refeitório; Sala de diplomas,

certificados e fotos; Sala de aparelhos adjutórios e Sala de vídeo e som.

Secretaria

Trata-se de um ambiente cuja função é fornecer a quem for até lá informações

sobre a Casa e todas suas atividades. Há um site oficial da Casa:

joaodedeus.com.br/plus. Nesse local ficam disponíveis dois telefones para contato:

(62) 3343.1254 e (62) 3343.1776. No ano de 2016 havia na parede da secretaria uma

foto emoldurada do então governador de Goiás. Até o final de 2018, no lugar,

encontrava-se a foto do governador de Brasília. Perguntado o porquê da mudança, a

recepcionista não soube responder. Adjacente à secretaria, encontra-se a sala do

assessor da Casa, ocupada pelo senhor Chico Lobo, ex-vice-prefeito da cidade.

Salão

Nesse espaço há quase trezentos lugares disponíveis àqueles que chegam

pela manhã, às 7h; e à tarde, às 13h. Os trabalhos se iniciam às 8h e às 14h. Porém,

por volta das 7h30 quase já não há mais espaço para se sentar. No salão tem um

pequeno palco para palestras, orações e atendimento de quem deseja intervenção

física. ―Quem entra na fila, passa pela Entidade e quer intervenção no corpo, solicita-

se que espere – aparentemente, até que dê um número razoável. Feito isso, leva-os

para o palco, realizando as intervenções na frente de todos‖ (DIÁRIO DE CAMPO,

06.06.2018). No centro desse palco, pendurado na parede, fica um triângulo de

madeira onde as pessoas colocam fotos, pedidos, encostam a cabeça e,

normalmente, fazem suas orações. Nesse salão, próximo à entrada, no canto

esquerdo, fica uma televisão ligada reproduzindo imagens de intervenções físicas, de

4 Entidade é o nome que se dá à representação do médium quando está incorporado, seja por qualquer

um dos 37 espíritos que ele afirma receber (PÓVOA, 2016). Assim, neste texto, será utilizado

‗Entidade‘, raramente ‗João de Deus em Entidade‘, ‗João em Entidade‘ ou ‗João na Entidade‘.

28

caráter cirúrgico. Algumas imagens são chocantes, merecedoras de pesquisas

científicas.

Em relação à decoração do espaço, há vários quadros e pinturas espalhados

pelo salão. As pinturas são: Jesus segurando uma ovelha; Jesus à beira de um riacho

soltando água pela mão; Chico Xavier e Jesus se abraçando; rostos de Dom Inácio;

de Dr. Augusto de Almeida; da Virgem Maria jovem; de Bezerra de Menezes; e há

também pintados os símbolos do budismo [presente do Dalai Lama ao médium,

quando em visita ao Brasil]. Os quadros, por sua vez, são dois: João de Deus

realizando operação em seu próprio corpo;

,

e uma mulher materializada – sem pés –

vestida de branco com véu na cabeça, sendo amparada por Chico Xavier (DIÁRIO DE

CAMPO, 19.01.2018).

No decorrer das pesquisas etnográficas, foi observado que, antes de começar

as palestras, algumas pessoas estavam com terços nas mãos e faziam orações. Uma

mulher sentada lia a obra ―Devocionário - São Miguel Arcanjo‖, segurando o terço e,

de vez em quando, persignava-se; outras traziam o terço pendurado ao pescoço. As

demais encontravam-se em profunda meditação, talvez embaladas pela suave música

que ecoava. No entanto, algumas pessoas se levantavam de onde estavam sentadas

devido às placas, nas colunas, indicando assentos preferenciais para idosos,

gestantes, crianças de colo e cadeirantes. Apesar de estar cheio, o salão não estava

abafado. E, devido ao calor goiano, havia dois grandes aparelhos de ar-condicionado

ligados. Ao ser iniciada a oração do dia, às 8h, a cada vinte minutos, alguém da

organização levantava uma placa na qual estava escrito ‗silêncio‘ e saía andando pelo

salão [havia um quadro pendurado com os dizeres ‗o silêncio é uma prece‘, mesmo

com a placa, o silêncio é um pedido constante nesta sala e nas salas internas.

Propaga-se que estrondo de coisas e ruído das conversas ‗quebram a corrente,

causando dor‘. Quando o murmurinho estava exaltado, uma maneira dos palestrantes

conseguirem silêncio era interromper o que estavam dizendo e iniciar uma oração,

normalmente o pai-nosso. Segundo Garcia (2013), há evidências de que barulhos

interferem na dor sentida por quem está em processo de intervenção. Pedia-se

também para desligar os celulares, ―pois o trabalho da corrente iria começar‖ (DIÁRIO

DE CAMPO, 22.06.2018).

Diferente de outros dias da pesquisa, na semana em questão estava se

comemorando o aniversário do médium; e como a data é próxima às festas juninas, o

salão encontrava-se repleto de bandeirinhas coloridas e outros enfeites. No final dos

29

trabalhos na Casa, por volta das 17h30, na saída das pessoas da corrente, a todos os

presentes no salão, foi distribuída a letra musical ―Como é grande o meu amor por

você‖, do cantor Roberto Carlos. Quando saiu João de Deus de sua sala e subiu ao

palco, todos cantaram; em torno de trezentas pessoas, o salão estava lotado. A

emoção foi grande, muitos presentes choravam, inclusive o médium João, que fez um

rápido discurso e sustentou: ―Eu não curo ninguém, quem cura é Deus... Não tenho

religião, sou universal5. Minha religião é Deus‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 22.06.2018).

Houve muitos aplausos, várias pessoas se abraçaram e outras distribuíram flores aos

presentes; [ganhamos um vaso com flores amarelas, gérberas].

Voltando ao cotidiano no salão, formam-se filas para o atendimento. A

primeira é composta para que os médiuns e todos aqueles que queiram participar da

‗corrente‘ assumam seus lugares nas salas adjacentes ao salão; todos usam branco

ou cores suaves. Para fazer parte da corrente, deve-se chegar cedo, pois ―se não vir

com antecedência pode ficar sem lugar, ficando em pé‖ (DIÁRIO DE CAMPO,

24.08.2017). Nos dois períodos, antes do início do atendimento, há uma contagem

das pessoas nas várias filas compostas. Nesse contexto, as filas são assim

caracterizadas: na fila das 8h estão as pessoas que Entidade pediu, no dia anterior,

para rever pela manhã; a fila da 1ª vez é direcionada às pessoas que realizam o

primeiro atendimento na Casa; fila de 2ª vez – após o primeiro atendimento, todas as

vezes que quiser retornar ao médium, a pessoa entra nessa fila – ; fila de intervenção

espiritual e fila de revisão – ―para aqueles que fizeram intervenção há mais de 7 dias‖

(PÓVOA, 2016, p.90); e fila das 14h – pois a Entidade solicitou para a pessoa voltar à

tarde. Às sextas-feiras à tarde, nota-se mais uma fila, a da despedida ou bye-bye –

fila para quem quer agradecer, se despedir ou solicitar benção.

Às 8h se iniciam os trabalhos do dia. Logo após as orações e avisos iniciais,

uma palestrante explicou:

Aqui na Casa de Dom Inácio nossas emoções ruins atrapalham o

atendimento com o médium João de Deus. Se for falar com a Entidade,

fale objetivamente. As emoções atraem. Pensamento é energia; atrai

coisas boas ou ruins. Procure ter bons pensamentos. Essa primeira

sala é a sala da desobsessão, onde se procura limpar os fluidos mais

pesados. Se você for convidado a sentar na corrente, feche os olhos

para não se distrair, olhe para dentro de si, procure o seu Deus que

pode ser católico, evangélico, espírita, budista ou outro. Não cruze os

5 Esta pode ser uma frase de impacto, pensando no ecumenismo, porém, em várias passagens

bibliográficas e outras demais, como se verá adiante, o médium João reitera ser católico.

30

braços e pernas, pois a energia passa pelo corpo e ao cruzar, você

bloqueia a energia. Ao pessoal que está desse lado peço silêncio.

Vamos rezar o Pai Nosso. ‗Pai Nosso que estais no céu...‘. As cenas

daquela televisão na parede são intervenções físicas, que só

acontecem se você pedir; por isso, não tenham medo. Na semana

passada tivemos, em nossa frente, casos de cortes surgindo sem que

a Entidade interferisse. Aqui na Casa de Dom Inácio primeiro você

deve crer para depois ver, ao contrário de São Tomé. Por esse motivo,

elevemos nossa vibração, fortalecemos nossa fé, pois tudo é possível

àquele que crê. Quem cura não é o médium, é Deus através das

Entidades. Dr. Augusto de Almeida diz: ‗sou aquele que vai às

profundezas do abismo para resgatar uma alma‘. Sim, as Entidades

ajudam muito, vão trabalhar nos nossos negócios, relacionamentos e

outras frentes para termos equilíbrio. Quem quiser ir na corrente de

oração é só chegar mais cedo, 76 ou 13h. Se você está em tratamento

médico deve continuar com o tratamento, não pare pooor favor

(DIÁRIO DE CAMPO, 21.06.2018).

É comum, após o início dos trabalhos, o médium subir ao palco para a

realização de intervenções visíveis. Para quem nunca viu, a incorporação do médium

normalmente ocorre quando este inicia a oração de Cáritas ou uma prece de amor, o

que frequentemente faz o médium João se emocionar e chorar. De repente, ele se

estremece – às vezes, procura apoio. Transcorrido alguns segundos ele para de

chorar e assume feição séria; seus olhos e face mudam – ―a palestrante avisa que

dependendo a Entidade vinda, muda não só a cor dos olhos, mas também sua

constituição física e humor‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 31.08.2017). E como se tivesse

mais para observar, a Entidade olha para o que está fazendo na intervenção e também

para a público presente, como se procurasse algo ou examinasse os presentes.

Nesse contexto, a antropóloga Rocha apresenta o relato de um doente

australiano que, após a segunda olhada do médium incorporado, começou a passar

mal:

Na segunda vez que ele olhou para mim, minhas pernas começaram

a enfraquecer, meu peito começou a apertar, eu não conseguia

respirar, não conseguia ficar de pé, não conseguia manter a

consciência… Eu estava lutando para ficar de pé e pensei que havia

algo errado comigo. Eu não sabia o que estava acontecendo. Aí me

disseram: ‗É melhor vir à enfermaria‘. Lá eles me puseram na cama.

Caterina, minha guia, veio até mim e disse: ‗Você passou por uma

operação muito grande‘. Eu sentia que havia muita coisa acontecendo

6 Durante as observações empíricas, constatou-se que é mais fácil lotar a sala da corrente, que faltar

pessoas. Realmente, são muitos desejando um lugar. A fila é grande, muitos carregam almofadas,

tapa-olhos e garrafinha com água. Quando a sala enche, os que não conseguiram lugar permanecem

no salão ou se retiram. Pela experiência vivenciada na observação, recomenda-se as pessoas

chegarem mais cedo, às 6h30.

31

com meu corpo, tive sensações de energia e atividade (apud ROCHA,

2015, p.103).

Na realização das operações físicas, em torno de dez Filhos[as] da Casa [FC],

ficam auxiliares ao lado da Entidade,

,

dando-lhe instrumentos solicitados, segurando

bandejas com instrumentos cirúrgicos. Comumente, a Entidade usa uma faquinha de

cozinha, água fluidificada, algodão, toalha, microfone e outros. É comum a Entidade

estar acompanhada por um médico convencional, que busca cura ou provas. Durante

o trabalho mental que é realizado, o médium solicita do médico participação na

observação, apontamento da doença e, literalmente, o ato de ‗enfiar o dedo‘ no corte,

em seguida ocorre a realização de sutura e outros métodos7. Terminada a operação,

que costumeiramente se resume em enfiar uma pinça em forma de tesoura no nariz e

girá-la [sondagem nasal], raspagem de olho e cortes com facas ou bisturi, outros FC

carregam nos braços a pessoa operada para a enfermaria ou em cadeira de rodas.

Sala de repouso ou enfermaria

Com uma dezena de leitos, as pessoas que passam por intervenções físicas

ficam em repouso nesse ambiente, aguardando que a Entidade as libere, ou até que

os trabalhos do turno acabem. Por sua vez, os voluntários que ajudam nos trabalhos

são orientados por uma enfermeira. ―Vale esclarecer que o repouso pós-intervenção

na medicina convencional pode exigir vários dias com o paciente hospitalizado. Na

Casa de Dom Inácio, o repouso pós-intervenção pode durar algumas horas‖ (GARCIA,

2013, p.111).

Sala dos Médiuns

Essa sala constitui o primeiro ambiente da corrente. Ali ficam, em grande

parte, aqueles que possuem mediunidade, aguardando o início dos trabalhos. Tal

ambiente é concebido de dois modos: a) como lugar de limpeza energética das

pessoas que irão passar pela Entidade e; b) como uma ‗sala escola de médiuns‘,

7 Há inúmeros relatos e vivências de médicos tradicionais na Casa, que seria prudente uma pesquisa

aprofundada sobre estes, a qual contemplasse análises e considerações. É importante destacar que

―em junho de 2011, a médica dinamarquesa Charlotte Bech Lund decidiu investigar o fenômeno João

de Deus. ‗Vim, porque muitos pacientes meus vieram, melhoraram e voltaram para concluir o

tratamento comigo, mas sem remédios‘, afirma Charlotte, que voltou ao Brasil para passar as três

primeiras semanas de janeiro em Abadiânia. ‗Cheguei ao topo da carreira prescrevendo receitas e

vendo os efeitos colaterais que os medicamentos causam. Aqui, com passiflora, as pessoas se curam.

É algo transcendental‘, diz a dinamarquesa‖ (NICACIO e LOES, 2012).

32

pois os ―participantes aprendem a aguçar a sua capacidade de canalizar a luz e

cultivar um espaço interior para si e para outras pessoas, enquanto recebem e

doam energia‖ (CUMMING e LEFFLER, 2008, p.100). Recomenda-se exercitar a

técnica de visualização de imagens salutares, não de doenças – se possível, com

todas sensações e sentimentos deleitosos. Como resultado, espera-se um quadro

de bem-estar interior. ―É essa disposição que eleva a consciência e a frequência

divina. Depois [...], em harmonia vibracional com o Divino, concentre-se em

receber e doar energia divina‖ (CUMMING e LEFFLER, 2008, p.103). Capacita-

se também a pedir desbloqueio da saúde e vitalidade às Entidades. ―Com esse

singelo pedido de ajuda, as Entidades têm a permissão de iniciar o trabalho

espiritual em comum acordo com o desejo da pessoa de restabelecer a sua

integridade‖ (CUMMING e LEFFLER, 2008, p.100).

Sobre a visualização, quando se dirigem as mentalizações da corrente, o FC2

sempre declara aos frequentadores que ―não sendo a cura um objetivo, mas sintoma

do amor de Deus‖, é importante que todos ―tragam seus problemas, pedidos e

visualizem-nos no altar [do médium], na frente da sala; que os coloquem ali, deixem

lá. A preocupação naquele momento é se entregar a Deus, amar a Deus‖. Mesmo que

a visualização, nesse exemplo, aconteça de forma negativa, isto é, para visualizar os

problemas no altar e se entregar a Deus, como se não houvesse mais visualização na

entrega divina, além de propiciar certa metodologia na corrente, é dito que os

problemas não devem atrapalhar os trabalhos de concentração. Apesar de se

posicionarem relativamente diferente entre si, tanto o FC2 bem como as autoras

Cumming e Leffler (2008) salientam a importância da visualização.

Além das cadeiras dos médiuns, há nessa sala um bebedouro e duas pinturas

retratando rostos de pessoas com turbantes, assemelhando-se a árabes. Segundo

relatos de um FC, trata-se de desenhos mediúnicos (DIÁRIO DE CAMPO,

19.07.2018).

Sala da Entidade

Trata-se de um lugar junto à sala dos médiuns. Nela, ao fundo, localiza-

se a cadeira em que João de Deus atende quando está em Entidade. Há também

médiuns sentados, de olhos fechados [no início dos anos de 1980, todos ficavam

de pé, ao lado da Entidade (MACHADO, 2016)]; eles não cruzam os pés, pernas

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ou as mãos no intuito de poderem doar energia aos trabalhos da Casa, como alertado

anteriormente. Na realidade, existem três salas interligadas, o que totaliza,

aproximadamente, trezentas pessoas sentadas na ‗corrente‘. Na terceira sala ficam

aqueles que, ao passar pela Entidade, ela lhes solicita: ―sente na minha corrente‖

(DIÁRIO DE CAMPO, 13.09.2017) ou ―vá trabalhar na corrente‖ (MACHADO, 2016,

p.27). Na sala da Entidade, pode-se observar várias estátuas de tamanhos diferentes,

como a da Virgem Maria [esta, a mais alta, possui quase um metro e sessenta

centímetros de tamanho e é protegida por um vidro grosso], de Dom Inácio, de Santa

Rita de Cássia e outras; há cristais petrificados de copiosas cores [possuindo um

metro, um metro e meio de comprimento], muitas flores espalhadas em vasos, pinturas

com os rostos de Oswaldo Cruz, Bezerra de Menezes, José Valdivino e outros. Podem

ser vistos também quadros de Jesus Cristo e de Dom Inácio. Em uma parede branca,

foi pintado em azul, com letras grandes e em latim, o lema de Dom Inácio de Loyola,

cujos dizeres são: Ad Majorem Dei Gloriam [Para maior glória de Deus]. Uma trilha

musical ecoa por todo o salão; e em todas as salas próximas à Sala da Entidade,

ouvem-se melodias instrumentais, hinos ou músicas dedicadas ao médium João.

Quase tudo ali estimula o sentimento de devoção.

O termo ‗corrente‘ é dito para todos os médiuns e a qualquer público da Casa.

―Corrente, nesse contexto, possui a concepção de fluido energético que percorre o

corpo das pessoas, passando de uma para outra. Por isso, recomenda-se não cruzar

as pernas, os braços e as mãos para não quebrar a corrente‖ (GARCIA, 2013, p.127).

Quando a Entidade convida uma pessoa para sentar na corrente, significa que essa

pessoa possui capacidade mediúnica para auxiliar nos trabalhos ou ela está

precisando de equilíbrio energético.

A experiência na corrente, nessa sala, como pesquisador, pode ser

caracterizada como algo ímpar. A primeira sensação diferente surgida é digna de ser

ressaltada, pois quando saímos do salão e adentramos a Sala de Médiuns, levamos

um choque. A analogia pode ser esta: acreditamos que muitos já colocaram o dedo

na tomada... Sim, foi um choque, porém um choque de amor, de um sentimento

oceânico e prazeroso; sentimos todos os poros exalarem uma alegria indescritível;

gozamos de uma sensação similar a de vários amigos queridos estarem se abraçando

ao mesmo tempo; um sentimento parecido ao de mergulharmos à água de uma

piscina, mas de uma piscina cujo conteúdo é algo imaterial e afetuoso, repleto de

emoção, o qual faz brotar lágrimas de gratidão; uma gratidão de estar onde estamos

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e de chegar aonde chegamos; ‗do nascimento até hoje‘. Fizemos esforço para não

chorar, tentando manter a função e papéis científicos, ‗ali a emoção não deveria cegar

o cientista, não era bem-vinda‘. Contudo, depois de dias, percebe-se que toda essa

fenomenologia emocional poderia ser um sinal experimental para o cientista. Mas

naquele momento não foi, a palavra de ordem era contenção. Sentou-se no banco.

Nesse dia, dentro da Sala da Entidade, inicialmente,

,tem poder dado por Deus‖. Sobre o desagregar: ―vivemos um momento de separação do joio do trigo‖. Provavelmente grãos de trigo que a espiritualidade demorou para ajuntar: ―as Entidades sempre colocaram os irmãos em rede, uma rede de ajuda mútua e fraternal, um tecido grande de amor e poder. Laços que ajudam e funcionam. Agora, simplesmente alguns FC estão virando as costas e indo embora‖. Trata-se de uma etapa de apartar os que estão com receio de usar roupa branca nas ruas, por exemplo – ―por medo de serem achincalhados na rua, alguns estão trazendo as roupas brancas em sacolas e trocando de roupa aqui na Casa. Eu não, estou dando minha cara à tapa; uso branco‖. Para ele, nesta fase inquieta, ―percebo quem está acordado e quem não está; quem está atrasado e aquele que está vivendo. Trata-se de separar o interesse pequeno, o materialista, o falso poder. No entanto, cada um seguindo seu caminho‖. Inclusive, doenças que haviam sido curadas pelo médium estão retornando: ―ora, eu mesmo passei por isso. Fiquei atribulado e meu sintoma antigo voltou, fiquei temeroso. Reli a Fisiologia da alma de Ramatís, reestudei o espiritismo e fui me acalmando‖. Ele garante que somente 150 quando o médium apareceu na Casa ―naquela quarta-feira‖ [12.12.2018, grifo de ênfase] dizendo que ele tinha de cumprir a lei brasileira ―e colocou a imagem da Santa Rita na sua cadeira, então minha dor sumiu. Ali percebi que eu devia me atrelar a Deus, e não à pessoa do médium. Quem atrela sua cura ao médium, a doença volta. Devemos nos atrelar a Deus‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 08.01.2019). Diante das opulentas informações fornecidas pelo FCe e do foco de entender seu pensamento sobre as acusações sexuais contra João de Deus, é possível notar que ele afirmou ser o médium falível como outro humano qualquer, provavelmente, por ter certa vaidade e ganância e por nunca ter feito voto de castidade como alguns quadros do espiritismo; João Teixeira de Faria é considerado um indivíduo simples, porém com a particularidade da mediunidade. Contudo, o FC em questão ressalta que João de Deus não assediava as mulheres, mas o contrário, elas o assediavam. Desta forma, nota-se que nenhum dos FC asseverou inocência do médium ou perseguição injusta. Somente o FCe tocou em seu nome. De modo geral, todos os FC deslocaram como foco o poder espiritual na e da Casa, independente do médium João. Aparentemente, esse lugar se revelou ‗o‘ lugar sagrado, espaço de peregrinação, afinal, afirmou a FC8: ‗as curas da Casa‘, como se a Casa fosse não só o lugar da cura, mas a causa da cura, sendo lá que se reúnem os espíritos de tratamento e restauração. Ressalta-se que ‗local sagrado‘ não aconteceu com Zé Arigó, nem com outro médium conhecido; quando eles se foram, o trabalho acabou. Logo, diante do exposto neste capítulo, foi possível notar as objetivações da Casa de Dom Inácio, seus inúmeros trabalhos e contribuições aos frequentadores. Igualmente, constatou-se que a Casa é fruto das objetivações de João de Deus, ao longo de sua história de vida, e de como os FC se juntaram a ele, em retribuição, como sinal de gratidão pelas curas alcançadas; a maioria inclusive, sete dos FC, se mudaram próximo à Casa, distanciando-se de suas cidades natais, parentes e familiares. Todo o movimento de João de Deus, o qual aglutina a construção da Casa e a reunião dos FC revela que a tríade dialética de objetivação, exteriorização e interiorização proposta por Berger e Luckmann (2013) se efetiva não somente na objetivação da Casa, mas nas subjetividades e materializações expressas na cultura como um todo. Entretanto, tudo isso tem como alicerce basilar a linguagem, responsável por exteriorizar as internalizações e propiciar objetivações, em um ciclo interminável. Como os simbolismos também foram propiciados pela linguagem – que por sua vez 151 são da mesma forma simbólica – eles constroem cadeias de percepção e blocos de realidade na união de imagens, dentre as quais muitas passam a ser vivenciadas. Nesse contexto, os símbolos religiosos, de modo semelhante, constroem realidades sagradas, ‗intocadas‘ pelo profano; o poder do ritual religioso, revelando forças misteriosas e poderosas, expressa-se na rememoração constante deste, despertando também sentimentos de veneração e respeito. Desta forma, os sentimentos religiosos dos FC, mesmo sendo interiorizados, são observados na doação de tempo e trabalho destes a quase tudo na Casa, seja ajudando o médium na organização das filas ou buscando algum objeto necessário para ele; dando palestra, aplicando passes magnéticos, orientando pessoas nos múltiplos espaços, buscando e distribuindo água fluidificada, traduzindo línguas estrangeiras [inglês, francês e alemão], cuidando dos enfermos, abraçando seus iguais ou ‗desconhecidos gratos‘, mantendo asseado o ambiente, dando seus depoimentos, produzindo sopa e servindo-a com largos sorrisos; por fim, são incontáveis doações dos FC para a mesma. Como disse a FC8: ―eu tenho tanta gratidão que eu acho que em uma encarnação assim eu não consigo expressar tudo e agradecer‖. Entretanto, tudo o que acontece na Casa está envolto à mediunidade de João de Deus, o único autorizado a receber Entidades. Mas o que é mediunidade? Qual ciência pode explicar tal fenômeno? Dentro de sua filosofia, qual seu ethos e visão de mundo? Além dos rituais diferentes, a Casa pratica o espiritismo ou o espiritualismo? Qual a concepção de espiritualidade para os FC e como ela se dá no seu cotidiano? Estes e outros questionamentos serão vistos em profundidade no próximo capítulo, o qual, apesar de estar distante de apresentar respostas conclusivas, apontará possíveis perspectivas teóricas sobre tais indagações. 152 CAPÍTULO II – SENTIDOS E SIGNIFICADOS DO ESPIRITISMO Toda a nossa ciência comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos. Albert Einstein Diante do objetivo de compreender e analisar os sentidos e significados dos FC, advindos das intervenções espirituais realizadas por João de Deus, a finalidade do presente capítulo é conhecer o espiritismo. O intuito não é somente distinguir as práticas da Casa, pois muitos a concebem e divulgam-na como um centro espírita – apesar de não o ser –, como forma de explicação da mediunidade de João de Deus, mas entender o ethos e visão de mundo dos FC. No entanto, questiona-se: os FC são espíritas ou espiritualistas? O capítulo inicia-se pelas definições de sentido e significado que são assumidos neste trabalho, procurando evidenciar suas relações com a kénosis no sentido kierkegaardiano. Assim, explorar-se-á a concepção de espiritismo e se o mesmo é religioso – como é entendido comumente pela Casa de Dom Inácio. No entanto, seria o espiritismo uma religião? Ethos religioso e a visão de mundo propostos por Geertz (1989) são os próximos itens da investigação, juntamente às objetivações dos mesmos pelos FC, isto é, de como estes vivenciam suas compreensões de ordem geral, expressas em seus atos na Casa. Sequencialmente, será verificado o entendimento de Allan Kardec sobre mediunidade – considerada elemento basilar do próprio espiritismo – os tipos desta e a diferença entre mediunidade espírita e médiuns curadores, pois de acordo com Kardec, esta é a capacidade do médium João de Deus. Enfim, como os FC não seriam FC sem as intervenções espirituais que João de Deus realiza, busca-se compreendê-las através de estudos etológicos e etiológicos, ou seja, o entendimento da intervenção espiritual pelo espiritismo e pela antropologia. 2.1 Sentidos e significados Geralmente, no decorrer das pesquisas, é comum definir significados, partir de pressupostos, traçar metodologias tradicionais ou inovadoras, levantar hipóteses alicerçadas nos valores do estudo – contextualizados no momento histórico – e buscar
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Job: Corporate Healthcare Strategist

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Introduction: My name is Foster Heidenreich CPA, I am a delightful, quaint, glorious, quaint, faithful, enchanting, fine person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.